O dia em que a boçalidade saiu à rua
O pecado de António Borges foi ser frontal e corajoso. Portugal prefere as meias-tintas e a dissimulação
1. Vou escrever uma frase horrível: às vezes é muito deprimente ver o povo a exprimir-se em todo o seu esplendor. E não escrevo por snobeira enjoada com algum concerto de música pimba ou mais um piquenicão. Escrevo-o depois de ter passado os olhos por algumas das caixas de comentários das notícias relativas à morte de António Borges. E de ter andado um pouco pelas redes sociais nesse dia. O que vi foi ódio e boçalidades genuínos, por vezes exprimindo-se sob o manto cobarde do anonimato, outras vezes expondo-se ao mundo com alarvidade e assinatura.
Porque é que isto se passou? Por que tanta gente sentiu necessidade de vir insultar - sim, de insultar, não apenas de recordar divergências de pontos de vista - alguém que tinha acabado de morrer? Afinal António Borges nunca foi ministro, nunca exerceu como deputado - o cargo político de maior responsabilidade que exerceu foi o de presidente da Assembleia Municipal de Alter do Chão -, pelo que não foi ele que andou a desbaratar dinheiro ou a aumentar impostos. Em Portugal foi professor em várias universidades, vice-governador do Banco de Portugal, administrador de empresas, consultor do Governo, mas foi no estrangeiro que ocupou cargos de maior relevo e foi lá que ganhou mais dinheiro. Não beneficiava de qualquer reforma indecorosa, como tantas outras figuras públicas no activo. Porquê então, repito, tanta acrimónia, tanto azedume, tanta raiva?
Entre várias respostas possíveis, a que prefiro vem destacada em quase todos os perfis que sobre ele se escreveram: era um homem frontal que dizia o que pensava, sem meias palavras, e que tinha convicções fortes. Em Portugal isso vai contra os costumes estabelecidos. Acresce ainda que a sua falta foi maior, pois nunca teve o beneplácito dos nossos polícias da opinião, até porque cometia o pecado de não ser de esquerda. Pior: era um liberal.
O facto de tantos terem entendido sublinhar a sua frontalidade é, em si mesmo, significativo. Só se explica por essa qualidade ser rara em Portugal. Preferimos, por regra, a dissimulação. Os paninhos quentes. A bissectriz. Nuns casos, isso leva ao "respeitinho". Noutros à anomia. Há carreiras inteiras feitas por figuras públicas a quem nunca ouvimos nada de substancial, de quem verdadeiramente nem sequer conhecemos o que pensam sobre os temas mais controversos. Basta pensar nalguns dos nossos comentadores-estrela para vermos como eles nunca se comprometem, ou então só se comprometem com causas populares. Vão sempre com a maré, nunca remam contra a maré.
António Borges também se distinguiu por ser alguém que desafiava o pensamento dominante sem recorrer ao acinte pessoal. Aquilo que indignava os nossos profissionais de indignação - uma espécie de gente cada vez mais presente nos espaços públicos de debate - era ele dizer alto o que muitos nem se atreviam a sussurrar. Tomemos um exemplo: a sua defesa de que os salários teriam de descer para a economia reganhar competitividade. Não era uma ideia original, pois até um dos papas inspiradores da esquerda mundial, o prémio Nobel da Economia Paul Krugman, a defendeu, mas na boca de Borges tornou-se um crime de lesa-majestade. Pela razão simples de que ele defendeu essa ideia sem rodriguinhos nem meias-palavras. Pior: Borges foi uma das vítimas de uma táctica demasiado presente no espaço mediático e que denunciei nesta coluna há exactamente um ano, a táctica de desqualificar o adversário, rebaixando-o a um nível sub-humano, para que nem se escute o seu argumento.
Mas Borges foi ainda vítima de outros vícios bem portugueses, em especial os do medo e da dissimulação. Eu sei que pessoas frontais como ele são, por regra, aconselhadas a terem cuidado. Ou então elogiadas pela sua coragem, como se em liberdade fosse necessário ser corajoso para expressar sem medo aquilo em que se acredita. E isso só sucede porque a triste verdade é que é muito mais fácil ter sucesso quando se opta pela prudência do silêncio ou da frase sem arestas (ou por dizer o que todos querem ouvir) e muito mais provável acabar ostracizado quando não se olha a tais conveniências.
O triste espectáculo destes dias fez-me também regressar a uma das minhas grandes inquietações, a ideia de que em Portugal não se preza, e se calhar nunca se prezou verdadeiramente, a liberdade. A liberdade que implica saber escutar um argumento diferente, conviver com quem pensa de outra maneira, correr o risco de estar em divergência com a maioria, apreciar a existência de pontos de vista diferentes. Olhamos muito para a liberdade como essa coisa que nos permite fazer o que entendemos, olhamos muito pouco para ela como dando aos outros o direito de divergirem radicalmente de nós.
Corrijo por isso a frase inicial. Não culpo o povo. Afinal ele não faz mais do que macaquear as elites.
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