A indústria dos sonhos

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2013-08-26

Vivemos mergulhados em ficção. A humanidade sempre se elevou da dureza quotidiana saboreando romances, teatro, epopeias, poesia. Mas nas novas formas de expressão - cinema, televisão, videojogos, sites, revistas - sobretudo em férias, devoram-se três e quatro enredos por dia.
Esta gula, além de empanturrar, envenena pela má qualidade. Os artistas têm propósitos elevados. Sempre houve pantomimas e "literatura de cordel", mas a verdadeira criação aspira à excelência. Só que hoje a ficção é dominada por uma indústria cuja finalidade é divertimento e a motivação comercial. O "produtor de conteúdos" tornou--se apenas uma peça numa poderosa máquina alimentada a popularidade. Os resultados são tristes.
Primeiro, desapareceu a "moral da história". Antes, a imaginação pretendia instruir, aconselhar, inspirar. Com a vida orientada para finalidade superior, a comunicação era o meio para um objectivo sublime. Mas num tempo em que a cultura dominante se orgulha da perda do transcendente, tudo se reduz ao material. Alguns sicofantas da modernidade chegam a tentar justificar a "arte pela arte" pondo o objecto acima do sujeito. No cinema actual, a história até teria vergonha de ter uma moral.
O segundo efeito da industrialização ficcional é a explosão da quantidade, que coloca a criação a prémio. Como a imaginação é rara, fica mínima a parte de ideias realmente inovadoras na imensa torrente de produções. Isso leva à multiplicação de séries, sequelas e reedições, para espremer ao máximo cada gota de originalidade. Assim o apetite voraz pela novidade recicla e requenta velhas ideias, rarefazendo a própria novidade.
Pior, a multiplicação reduz o valor. Para ser rentável e agradar às massas apela-se aos instintos básicos. Os condimentos indispensáveis são violência, erotismo, velocidade, grosseria, atrevimento, banalidade, secundarizando arte, elegância, subtileza, sofisticação, profundidade. A adrenalina é rainha, a rebeldia virtude suprema, sempre com filosofia, mas de plástico. Ideias antigas mas nos cenários da moda. As séries situam-se quase sempre em hospitais, esquadras, tribunais e cadeias, locais onde o espectador detestaria ver-se na vida real. Como a lei e a sociedade são sempre corruptas, o protagonista é anti-herói, transgressor, subversivo. E está sempre zangado. Se o bom é negativo, quem pode ser o malfeitor? Numa sociedade igualitária de direitos, onde está o inimigo? Para punir sem remorso e da forma brutal que a adrenalina impõe, é preciso que os vilões contemporâneos sejam caricaturas unidimensionais, irredutivelmente perversas e sem remissão. O psicopata é a personagem preferida, mas também zombies, vampiros, monstros e alguns nazis e capitalistas são esquartejados, explodidos e sangrados sem incómodo para o espectador.
Apesar de tanta televisão, Internet, quadradinhos e videojogos, ainda vivemos na realidade. Nela, o efeito desta inundação de ficção boçal é ambíguo. A intensidade da emoção empacotada estimula a sensibilidade e tende a extravasar para a vida. Somos uma época hiperactiva e neurasténica. Mas a ficção também serve de escape, descarregando no ecrã ou na página aquilo que se poupa ao próximo.
O pior está noutro nível. Toda esta produção fictícia vem mergulhada numa mesma ideologia, impondo que cada um viva na prossecução de um sonho. Num tempo que julga eliminar o transcendente, a finalidade última fica autocentrada. A pessoa define-se a si mesma, determina o seu horizonte num ideal individual e mítico, medindo-se pela dedicação a esse propósito.
Ambição e persistência são grandes virtudes. Mas a doutrina obsessiva do sonho é um deus ciumento. Gera pessoas ansiosas, não satisfeitas; exigentes, não humildes; egoístas, não agradecidas. Ser um falhado é o pior dos destinos, e o estado natural de quem não se contenta com o que tem. Com a desilusão inevitável, a demanda torna-se terrível armadilha, que devora liberdade, alegria, personalidade. Daí a depressão crónica, revolta endémica e turbulência social, que depois a ficção retrata.

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