Um texto execrável

Henrique Pereira dos Santos
Ambio, 2013-08-30

Há bastante tempo que deixei de me interessar pelo que escreve habitualmente Viriato Soromenho Marques no Diário de Notícias.
Mas desta vez resolvi interessar-me porque várias pessoas, cuja opinião prezo e considero, me remeteram um texto sobre fogos, acompanhado de grandes elogios.
Ora eu acho esse texto verdadeiramente execrável.
Como esta é uma crítica bastante violenta, passo a tentar fundamentá-la.
Passo por cima dos primeiros parágrafos, que não acrescentam nem atrasam (são uma visão ligeirinha e pouco fundamentada da história do movimento ambientalista, passando por cima de todo o trabalho da escola de arquitectura paisagista e dos florestais, por exemplo, em matéria de políticas públicas de ordenamento do território) e centro-me no que realmente conta.
"As reportagens televisivas mostram-nos, sistematicamente, bombeiros e populações cercados por eucaliptos em chamas."
Confesso, já o disse noutro contexto, que discutir fogos a partir do que aparece na televisão é como discutir física quântica a partir dos livros do Tio Patinhas. Mas independentemente disso, não é simplesmente verdade que as imagens dos fogos sejam bombeiros e populações cercadas por eucaliptos em chamas. A grande maioria dos fogos nem sequer é em povoamentos florestais. E quando são, não são sistematicamente eucaliptos, variam de região para região.
"Chegado a Portugal em 1829, esta espécie exótica ocupa agora 26% do espaço florestal, e é o grande combustível dos incêndios florestais."
VSM diz-nos aqui que 74% do espaço florestal não é eucalipto, mas que o eucalipto é o grande combustível dos incêndios florestais.
Se isso for verdade, os dados indicarão uma profunda relação positiva na sobreposição das áreas ardidas e nas áreas de eucalipto e, para além disso, as áreas de eucalipto seriam a maioria das áreas ardidas.
Ora, nada disso é verdade. Não só as áreas ardidas tem uma distribuição muito diferente da área de eucalipto, como a maioria do que arde são matos, e ainda é preciso juntar as outras espécies florestais, nomeadamente o pinheiro.
Factualmente VSM está errado neste ponto central da sua argumentação.
Mas isto não me faria escrever este texto: VSM não estuda fogos, não se informa, enquanto responsável pelo Programa Gulbenkian de Ambiente nunca ninguém lhe conheceu um especial interesse na matéria, nem contributo para resolver o problema, é pois natural que diga coisas erradas sobre um assunto que desconhece.
Um direito que nos assiste a todos é o direito à asneira e apesar do tamanho da asneira não me parece que se justificasse perder tempo a corrigi-la, tanto mais que são frequentes as pessoas que fazem questão em impedir que os factos influenciem as suas ideias.
"Quando vejo ministros, com ar pesaroso, lamentarem a morte dos bombeiros, apetece-me perguntar-lhes: "Onde estavam os senhores no dia 19 de Julho de 2013?". Nesse dia foi aprovado, em Conselho de Ministros, o ignóbil Decreto-Lei n.º96/2013, que, debaixo da habitual linguagem tabeliónica usada para disfarce, estimula ainda mais a expansão caótica da plantação de eucaliptos, aumentando o risco de incêndio, e fazendo dos bombeiros vítimas duma política de terra queimada ao serviço dos poderosos."
É aqui que o caldo se entorna, quando Viriato Soromenho Marques, com sólida formação em filosofia, resolver usar o argumento que já Daniel Deusdado tinha usado nesta matéria: existe uma relação entre os fogos de Agosto e uma lei florestal de Julho. Curiosamente nem se dão conta de que ao defender o status quo anterior, estão a defender a circunstância legal em que se desenvolveram os actuais fogos.
Uma tal barbaridade já não pode ser simplesmente atribuída à falta de conhecimento do assunto, é mesmo pretender torturar os factos até que digam o que se pretende.
E é essa voluntária vontade (passe o pleonasmo) de contrabandear factos para os pôr ao serviço de uma tese pré-definida que torna toda este texto particularmente podre, em especial tendo em atenção na forma como é concluído.
Eu teria vergonha de usar a morte de terceiros, em especial nestas circunstâncias, para procurar ter ganho de causa numa discussão política, mesmo que com base em factos solidamente irrefutáveis.
Pelos vistos Viriato Soromenho Marques não tem essa vergonha, nem mesmo quando usa argumentos factualmente falsos.
Viriato Soromenho Marques tem todo o direito de ser contra a exploração de eucalipto em Portugal.
Já é mais duvidoso que tenha o direito de associar a exploração de eucalipto apenas ao interesse dos poderosos, esquecendo que dos 750 mil hectares de eucalipto, apenas 150 mil são geridos pelas celuloses, sendo a grande maioria dos outros 600 mil de pequenos proprietários.
E esquecendo toda a riqueza criada, incluindo o emprego associado, como se fosse irrelevante para o país prescindir de uma das suas fileiras florestais mais competitivas internacionalmente.
E mais do que isso, VSM esquece que em muitas áreas de produção de eucalipto a alternativa à sua exploração é o abandono, potenciador de fogos mais severos e extensos.
Mas tudo isso cabe na discussão política, por pobres que sejam os argumentos de Viriato Soromenho Marques, neste caso.
O que eu não aceito, o que acho mesmo execrável, é que Viriato Soromenho Marques conte uma história da carochinha sobre a relação entre a produção de eucalipto e os fogos, usando a morte de bombeiros a favor do seu argumento político.
Este aspecto em concreto torna o texto verdadeiramente execrável.
henrique pereira dos santos

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