In memoriam... António Borges
Jornal de Negócios, 25 Agosto 2013, 22:30 por Camilo Lourenço | camilolourenco@gmail.com
Esta é a crónica mais difícil que já escrevi. De um lado está a amizade de longa data para com o melhor economista que Portugal já teve; do outro o dever de isenção exigido a um jornalista. Não sei se conseguirei ser isento. Provavelmente não. Mas sei que o leitor me perdoará…
Durante 25 anos acompanhei a sua carreira. Umas vezes mais perto do que outras. Fui o primeiro jornalista a noticiar o seu regresso a Portugal, para ser vice-governador do Banco de Portugal. Fui o primeiro a noticiar a sua saída, depois das ingerências do governo, chefiado por Cavaco Silva, na independência do banco central (uma das suas convicções inabaláveis). Foi a sua carta de recomendação (soube-o mais tarde pelo director do curso…) que se revelou decisiva para ser aceite na University of Michigan.
A ele lhe devo muito do que aprendi sobre Economia desde os tempos de estagiário de Jornalismo. Não havia uma única conversa em que não aprendesse nada com ele. Às vezes era frustrante: chegava às conversas com tanta convicção nas minhas ideias para ver, ao fim de cinco minutos, as teorias reduzidas a pó… Era frustrante? Não. Era a confirmação do seu brilhantismo.
Ontem, quando recebi a notícia que esperava que nunca chegasse, dei comigo a pensar no que aprendi com o António (uma das pessoas a quem, com o Jorge Marrão, companheiro de a "Mão Visível", agradeci contributos para o livro "Basta!"). Duas coisas: a liberdade de escolha e a necessidade de tornar o Estado eficiente.
A ele se deve a revolução que conduziu o Banco de Portugal a uma instituição independente do Governo. A ele se deve o fim da política de desvalorização do Escudo, que culminou com a entrada de Portugal na moeda única. A ele se deve (com as polémicas em que se viu envolvido) o debate sobre a necessidade de reduzir o peso de um Estado que asfixia a economia portuguesa.
Era, por vezes, demasiado descuidado com as palavras que utilizava? Sem dúvida. Mas convenhamos; muitas vezes as palavras eram despudoradamente utilizadas pelos seus inimigos políticos e por parte da classe a que pertenço (a comunicação social) para provocar polémicas artificiais. A questão da desvalorização salarial foi um bom exemplo...
O seu rigor com as coisas era obsessivo. Um dia, na sequência de um erro que cometi numa peça, lembrou-me o rigor do trabalho que a revista "Fortune" fizera com ele enquanto "dean" do INSEAD: "Às tantas", disse-me, "ligaram-me só para saber se um pormenor da reportagem, quase sem importância, era mesmo como tinham escrito". Foi uma forma simpática de me dizer que o jornalismo em Portugal precisava de mais rigor e seriedade. E isto foi em meados da década de 90. Imaginem as conversas sobre a qualidade do jornalismo actual…
Muita gente me perguntou, nos últimos anos, porque o defendia tanto. Simples: era de uma seriedade inabalável. Uma das últimas conversas que tive com ele foi a prova dessa seriedade. Ao falar-lhe do meu próximo livro, toquei no tema "carácter" como atributo fundamental da cultura de um povo. Foi o suficiente para me contar (a mim e à Liliana Valpaços, da Matéria Prima Edições) de uma visita à "baixa" de Lisboa: "Estacionei e descobri que não tinha moedas para por no parquímetro. Acabei por ir com outra pessoa tratar de um assunto. Quando voltei não tinha multa; mas como já tinha moedas coloquei no parquímetro o valor do tempo que tinha utilizado". Antes que o interrompesse (ia dizer "Que parvoíce!") terminou: "A pessoa que estava comigo perdeu a cabeça. Respondi-lhe que moralmente não podia ter outra conduta".
O António não era uma pessoa consensual? Não. Nunca o poderia ser: quem tem convicções tão fortes ou é amado… ou é odiado. Nunca lhe ouvi palavras desagradáveis para quem o criticava por convicção de ideais. Os outros, os que destilavam lhe ódio visceral, não o incomodavam.
Ao fim de 25 anos de convívio coleccionei episódios que, se revelados, chegariam para mudar a opinião que muitos, que não o conheciam, tinham dele. Mas nunca os poderei revelar. Tinha a secreta esperança de que fosse ele a fazê-lo num livro, escrito a duas mãos, que eu e a minha editora o convencemos a escrever. Um livro onde se falaria do que Portugal tem de fazer para ser tornar num país desenvolvido.
Esse livro, infelizmente, já não vai ver a luz do dia. Nem o livro nem os artigos para o "Negócios", para os quais o Pedro Santos Guerreiro me "autorizou" a convidá-lo a escrever (e que aceitou). Talvez um dia volte a falar com ele sobre o livro. Na outra Vida, em que ele tanto acreditava. Até sempre, António.
Durante 25 anos acompanhei a sua carreira. Umas vezes mais perto do que outras. Fui o primeiro jornalista a noticiar o seu regresso a Portugal, para ser vice-governador do Banco de Portugal. Fui o primeiro a noticiar a sua saída, depois das ingerências do governo, chefiado por Cavaco Silva, na independência do banco central (uma das suas convicções inabaláveis). Foi a sua carta de recomendação (soube-o mais tarde pelo director do curso…) que se revelou decisiva para ser aceite na University of Michigan.
A ele lhe devo muito do que aprendi sobre Economia desde os tempos de estagiário de Jornalismo. Não havia uma única conversa em que não aprendesse nada com ele. Às vezes era frustrante: chegava às conversas com tanta convicção nas minhas ideias para ver, ao fim de cinco minutos, as teorias reduzidas a pó… Era frustrante? Não. Era a confirmação do seu brilhantismo.
Ontem, quando recebi a notícia que esperava que nunca chegasse, dei comigo a pensar no que aprendi com o António (uma das pessoas a quem, com o Jorge Marrão, companheiro de a "Mão Visível", agradeci contributos para o livro "Basta!"). Duas coisas: a liberdade de escolha e a necessidade de tornar o Estado eficiente.
A ele se deve a revolução que conduziu o Banco de Portugal a uma instituição independente do Governo. A ele se deve o fim da política de desvalorização do Escudo, que culminou com a entrada de Portugal na moeda única. A ele se deve (com as polémicas em que se viu envolvido) o debate sobre a necessidade de reduzir o peso de um Estado que asfixia a economia portuguesa.
Era, por vezes, demasiado descuidado com as palavras que utilizava? Sem dúvida. Mas convenhamos; muitas vezes as palavras eram despudoradamente utilizadas pelos seus inimigos políticos e por parte da classe a que pertenço (a comunicação social) para provocar polémicas artificiais. A questão da desvalorização salarial foi um bom exemplo...
O seu rigor com as coisas era obsessivo. Um dia, na sequência de um erro que cometi numa peça, lembrou-me o rigor do trabalho que a revista "Fortune" fizera com ele enquanto "dean" do INSEAD: "Às tantas", disse-me, "ligaram-me só para saber se um pormenor da reportagem, quase sem importância, era mesmo como tinham escrito". Foi uma forma simpática de me dizer que o jornalismo em Portugal precisava de mais rigor e seriedade. E isto foi em meados da década de 90. Imaginem as conversas sobre a qualidade do jornalismo actual…
Muita gente me perguntou, nos últimos anos, porque o defendia tanto. Simples: era de uma seriedade inabalável. Uma das últimas conversas que tive com ele foi a prova dessa seriedade. Ao falar-lhe do meu próximo livro, toquei no tema "carácter" como atributo fundamental da cultura de um povo. Foi o suficiente para me contar (a mim e à Liliana Valpaços, da Matéria Prima Edições) de uma visita à "baixa" de Lisboa: "Estacionei e descobri que não tinha moedas para por no parquímetro. Acabei por ir com outra pessoa tratar de um assunto. Quando voltei não tinha multa; mas como já tinha moedas coloquei no parquímetro o valor do tempo que tinha utilizado". Antes que o interrompesse (ia dizer "Que parvoíce!") terminou: "A pessoa que estava comigo perdeu a cabeça. Respondi-lhe que moralmente não podia ter outra conduta".
O António não era uma pessoa consensual? Não. Nunca o poderia ser: quem tem convicções tão fortes ou é amado… ou é odiado. Nunca lhe ouvi palavras desagradáveis para quem o criticava por convicção de ideais. Os outros, os que destilavam lhe ódio visceral, não o incomodavam.
Ao fim de 25 anos de convívio coleccionei episódios que, se revelados, chegariam para mudar a opinião que muitos, que não o conheciam, tinham dele. Mas nunca os poderei revelar. Tinha a secreta esperança de que fosse ele a fazê-lo num livro, escrito a duas mãos, que eu e a minha editora o convencemos a escrever. Um livro onde se falaria do que Portugal tem de fazer para ser tornar num país desenvolvido.
Esse livro, infelizmente, já não vai ver a luz do dia. Nem o livro nem os artigos para o "Negócios", para os quais o Pedro Santos Guerreiro me "autorizou" a convidá-lo a escrever (e que aceitou). Talvez um dia volte a falar com ele sobre o livro. Na outra Vida, em que ele tanto acreditava. Até sempre, António.
Comentários