O pecado mora ao lado

João Miguel Tavares Público, 06/08/2013

Ricardo Sá Fernandes (RSF) escreveu um texto neste jornal intitulado Aquilo que João Miguel Tavares não sabe sobre a MAC, onde, depois de me considerar "um dos mais brilhantes comentadores da comunicação social portuguesa" (um elogio apenas partilhado pela minha mãe), faz uso da sua brilhante retórica de brilhantíssimo advogado para me acusar de falar sobre um assunto do qual percebo nada - acusação que seria verdadeira acaso o assunto de que ele fala fosse o assunto sobre o qual eu falei. Quer dizer: RSF entende que a Maternidade Alfredo da Costa não deveria ser fechada, acredita que a decisão do Governo é má e irracional, e a partir daí conclui que a decisão da juíza Anabela Araújo (que impede o encerramento da MAC) é boa. Ora, eu não quis discutir se a decisão de a MAC continuar aberta é boa ou má - o que eu quis foi discutir se a decisão é legítima, ou se, pelo contrário, ela pode ser considerada um atropelo do poder judicial ao poder político.
É esse o assunto que me interessa debater, e nesse aspecto o fecho da MAC é apenas mais um de numerosos episódios que têm ocorrido nos últimos dois anos. Sobre a MAC propriamente dita, eu já afirmara no texto anterior não ter opinião formada. Sou tão sensível aos argumentos de quem defende a centralização de diferentes especialidades num mesmo hospital, como sou sensível ao facto de o serviço de cuidados intensivos neonatais da MAC ter condições únicas em Portugal e de ter sido inaugurado há seis anos. O mesmo já aconteceu, por exemplo, com as urgências do Curry Cabral: encerram-se unidades que custaram milhões quando ainda estão novas em folha, numa espantosa demonstração de falta de planeamento e de total desrespeito pelos dinheiros públicos. Só que...
Só que, lá está, não é isso que está aqui em causa. Portugal é um vasto latifúndio de decisões incompetentes e lesivas do interesse público, e no fundo do nosso coração todos nós gostaríamos que um juiz, um procurador, um ciclista ou um padeiro tivesse impedido o país de chegar onde chegou. Imaginem o jeito que teria dado uma providência cautelar que impedisse o engenheiro técnico José Sócrates de abandonar os quadros da Câmara Municipal da Covilhã, limitando o seu serviço público à destruição da arquitectura local, em vez de colapsar toda a economia nacional. Só que não é assim que as coisas funcionam em democracia. E a questão está em saber se cada despacho, cada deliberação, cada decisão política, por pior que sejam, pode - ou deve - ser analisada por um juiz.
RSF afirma no seu texto que a sentença evita uma "má decisão administrativa". Eu deixo para os especialistas a questão do adjectivo "má" - o que me interessaria muito era conhecer a opinião de RSF sobre o adjectivo "administrativa". É que se qualquer acto de fechar, cortar ou remodelar qualquer coisa na administração pública é um acto administrativo, e se todos os actos administrativos, sem excepção, são passíveis de serem escrutinados pelos tribunais, eu pergunto: não valerá a pena começar a levar uma representação de juízes-conselheiros para as negociações com a troika? Infelizmente, não é ironia - é que se os juízes começam a não vislumbrar a diferença entre um mau acto administrativo e um acto administrativo ilegal, cheira-me que vai começar a haver muita pancada entre o terceiro e o primeiro poderes. E, no meio da confusão em que estamos enfiados, o que o país definitivamente não precisa é de uma guerra entre juízes e governantes.

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