A democracia baseia-se numa opinião facultativa sobre a dignidade humana?
A revista Ingenium divulgou recentemente um episódio passado com o grande matemático Kurt Gödel, a quem devemos os teoremas da incompletude, ou "teoremas de Gödel". A história tem a ver com uma resposta desconcertante à pergunta: "Podem os EUA tornar-se uma ditadura?" (1)
Nos anos do regime nazi, Gödel mudou-se da sua Áustria natal para os Estados Unidos. Trataram-no como um dos maiores matemáticos do século, deram-lhe as melhores condições de investigação e Gödel decidiu naturalizar-se americano. A lei exigia apresentar duas testemunhas abonatórias e mostrar um conhecimento mínimo do país. Simples: Gödel pediu a dois colegas, Albert Einstein e Oskar Morgenstern, que o acompanhassem como testemunhas. Mas, mesmo com dois ídolos da cultura norte-americana, Gödel, com o seu vício da lógica, ia deitando tudo a perder. Encarou a formalidade burocrática tão a sério que se atirou a um estudo, meticuloso e exaustivo, da cultura e das leis dos EUA. Ao fim de alguns meses de investigação, deu-se conta de que a democracia americana era vulnerável! De forma perfeitamente constitucional, podia resvalar para uma ditadura, como tinha acontecido (com algum toque de ilegalidade) com Hitler, na Alemanha. Einstein e Morgenstern ficaram horrorizados: nem penses em dizer isso ao juiz! No dia da audiência, foram buscar Gödel de carro e tentaram a todo o custo distraí-lo. De início, tudo corria bem. Não é qualquer imigrante que apresenta Morgenstern e Einstein como testemunhas! Depois, vieram as perguntas ao próprio:- Mr. Gödel, de onde é natural?
- Da Áustria.
- Que tipo de Governo tinham na Áustria?
- Era uma república, mas a Constituição era tal que acabou por se transformar numa ditadura.
- É uma pena! Felizmente, isso é impossível neste país.
- Isso é que era bom! Pode acontecer e posso demonstrá-lo.
O sangue gelou nas veias de Einstein e Morgenstern. O tema melindroso! Felizmente, o juiz foi suficientemente inteligente para perceber e comentou apenas, "oh, meu Deus, não vamos entrar por aí", dando o exame por concluído.
Gödel conseguiu naturalizar-se. Mas o perigo existe mesmo, porque a letra da lei deixa de proteger uma sociedade que coloca a defesa da vida humana ao nível de uma opinião facultativa. Quando a firmeza deste princípio esmorece, as palavras significam tudo e o seu contrário. Por isso a democracia colapsou em O Triunfo dos Porcos (Animal Farm), de George Orwell, como ele explica num artigo publicado no Horizon: "As palavras democracia, socialismo, liberdade, patriótico, realista, justiça têm, cada uma, vários significados irreconciliáveis entre si. (...) Quase todos acham que chamar democrático a um país é elogiá-lo: consequentemente os defensores de qualquer tipo de regime reivindicam que ele é uma democracia (...). As palavras deste tipo são usadas de forma conscientemente desonesta. Quer dizer, quem as usa tem a sua definição privada, mas deixa que o ouvinte pense que quer dizer outra coisa, completamente diferente" ("Politics and the English Language", Horizon, Abril 1946).
Geralmente a intenção não é retorcida, como Orwell suspeita, mas ele tem razão quando alerta para o perigo de cairmos na ambiguidade semântica, mesmo inadvertidamente. Por isso me preocupa que a prof. Laura Ferreira dos Santos (PÚBLICO, 28-7-2013) distinga entre vida biográfica e simples vida. Num caso, pode matar-se, no outro não. Rejeita o homicídio, mas apoia quem faz morrer, como acto de misericórdia.
Concordo com Laura Ferreira dos Santos quando escreve: "Defendo a inviolabilidade da vida humana: as sociedades verdadeiramente democráticas não podem permitir o assassinato". O problema é o que acrescenta: "Há duas hermenêuticas distintas para o mesmo valor partilhado, que é o da inviolabilidade da vida humana". Segundo uma interpretação, a inviolabilidade da vida humana significa que não se pode matar, a outra considera "um grave desrespeito (e crime)" opor-se à eutanásia, porque rejeitar a eutanásia é um atentado "contra a vida biológica e biográfica".
Assim, não há Constituição que resista: pode decretar que todos são iguais em direitos, ou que todos têm direito à vida, ou que a sociedade assenta na solidariedade entre todos. Laura Ferreira dos Santos responde: "A eutanásia não é assassinato, é solidariedade".
Estamos de acordo em que a democracia assenta num mínimo de convicções. Um mínimo, sim. Mas não menos do que isso.
1) Jorge Buescu, "Podem os EUA tornar-se uma ditadura?", Ingenium 131 - Setembro/Outubro 2012
Prof. do IST; jmandre@hidro1.ist.utl.pt
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