O silêncio dos inocentes
Inês Teotónio Pereira, ionline 2013-08-03
Os pais de um recém-nascido tentam, durante dolorosos meses, responder a uma única dúvida: como é que o calo?
Nasce a criança. Depois de nove meses de espera, finalmente nasce. É saudável, é bonito, tem o nariz da mãe, o queixo do pai, a cabeça da irmã e os olhos do irmão. Está tudo bem.
Desafio seguinte: adormecê-lo. Começa a tormenta. Noites em claro, dias à volta das fraldas e da barriga da criança, horas a tentar perceber o que lhe vai na alma e aquilo que a faz gritar, chorar e refilar. Porque é que ele não dorme? É a pergunta que nos atormenta.
Tudo aquilo que os pais querem de um bebé recém-nascido é que ele durma. Nada mais. Alimenta-se a cria em intervalos regulares e esperamos que ela durma. É essa a razão da sua existência nos próximos meses: dormir. Se ele dorme está tudo bem: é porque não tem fome, não tem sede, não tem cólicas, não tem calor, não tem frio nem lhe dói nada. Por isso é que a primeira pergunta que se faz aos pais de um recém-nascido é: "Ele deixa-os dormir?" Um recém-nascido que deixa dormir, que dorme e deixa os outros dormir, é um bem escasso. É uma preciosidade. Conheci poucos.
Em regra, um recém-nascido não dorme nem deixa dormir. E quando um recém--nascido não dorme chora. Chora a qualquer hora da noite ou do dia e em tom estridente. Sem qualquer respeito. E é inútil zangarmo-nos ou tentarmos educá-lo. Um recém-nascido não é educável. Ele simplesmente é alimentado e lavado. Pouco mais há a fazer. Por isso a nossa existência passa a ter como único sentido adormecê-lo. Quando a criança fecha os olhos e fica em estado vegetal, a nossa alma rejubila. É o céu. Passamos nove meses à espera que nasça para o pôr KO mal ele nasce. É assim a natureza das coisas. A cruel natureza das coisas.
Por isso é que os pais de um recém-nascido tentam, durante dolorosos meses, responder a uma única dúvida: como é que o calo?
Não sei. Depois de ter lidado de perto com meia dúzia de recém-nascidos continuo sem saber. Há quem saiba perceber o que cada choro quer dizer, tipo código morse. Pois eu não. Não há maneira de conseguir distinguir os choros das criaturas. Nunca sei se é fome, se são cólicas, se é sede, se é calor? Para mim um choro é sempre uma gritaria insuportável. Por isso experimento tudo: faço as míticas massagens, enfio leite pela goela da criança a baixo, visto-a, dispo-a, até que ela e eu caímos para o lado de exaustão sem ter resolvido o problema de raiz. E a raiz do problema volta a despertar passadas escassas horas.
Passam os meses, as crianças finalmente calam-se e eu continuo sem perceber porque é que elas tanto choraram. Nunca falamos sobre o assunto e chegamos mesmo a esquecer estas semanas alucinantes. Até que aparece um novo recém-nascido e voltamos à roda viva do costume.
Algumas coisas, no entanto, já aprendi. Aprendi que embalar não resolve nada, aprendi que a música não as faz calar e descobri o que são as cólicas. Ora as cólicas são o meu pior pesadelo. Um bebé com cólicas e uma corneta de circo são mais ou menos a mesma coisa: o som é insuportável. Com a agravante de que a pobre criança sofre horrores. É tudo mau. E a inevitabilidade desta tormenta ainda me atormenta mais. É que qualquer das outras razões que fazem com que um bebé abra a goela é remediável, mas as cólicas não são. Temos mesmo de esperar que a natureza siga o seu curso. Pacientemente.
E é este o principal mistério do mundo dos recém-nascidos: como é que a ciência ainda não descobriu um remédio eficaz para as cólicas? É verdade que o Aero-Om (um frasquinho cheio de açúcar em estado líquido cor-de-rosa) ajuda a distrair e a silenciar a criança durante uns minutos, mas não faz mais do que isso. Mas como esta é a nossa única arma contra a gritaria nocturna, abusamos. Os meus filhos recém-nascidos, por exemplo, já acordaram várias vezes de manhã com a cara cor-de-rosa de tanto Aero-Om mal dirigido que receberam durante a noite. Acho que vem daqui a expressão sonhos cor-de-rosa. Curtos, mas cor-de-rosa.
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