O que ninguém quer ver nos números do emprego e desemprego

Os números do desemprego não devem esconder os do emprego. Aí se vê quais os sectores onde se perderam empregos para sempre e se descobre como há, depois da crise, muito mais licenciados empregados.

Os números oficiais, goste-se ou não deles, são os do Instituto Nacional de Estatística, um organismo público cuja independência e seriedade ninguém tem posto em causa (se alguma dúvidas houve, é bom recordar, foram do Governo). E quanto aos números que hoje conhecemos, goste-se ou não deles, trouxeram boas notícias relativamente ao emprego e desemprego no segundo trimestre de 2015. O David Dinis já aqui falou deles, até a propósito da reacção do PS.
Mas há mais coisas relevantes nesses números, e delas pouco ou nada se tem falado. E o mais interessante de tudo é que assistimos nestes quatro anos a uma mudança gradual, mas já muito significativa, do perfil do emprego que está a desaparecer e do que está a surgir de novo. Uma mudança que surpreenderá quem só escuta as vozes mais pessimistas.
Os grandes números e o copo meio cheio ou meio vazio 
Comecemos pelos grandes números, e por uma comparação directa entre este segundo trimestre de 2015 e o segundo trimestre de 2011, o último da governação de José Sócrates. Esses grandes números são os do quadro abaixo:
2ºT 20112ºT 2015Diferença
População ativa5458,15201,2-256,9
População empregada4799,44580,8-218,6
População desempregada658,7620,4-38,3
Taxa de desemprego12,111,9%-0,2%
Para os primeiros, o que conta é que há hoje menos desempregados (38,3 mil) e a taxa de desemprego é a menor desde que, no primeiro trimestre de 2011, o INE adoptou uma metodologia mais rigorosa de medição do desemprego. Para os segundos, o mais relevante é que há em 2015 menos empregos (218,6 mil).Pode-se olhar para eles com a perspectiva do copo meio cheio ou do copo meio vazio.
Até aqui a discussão é mais ou menos objectiva. E, se nos ativermos aos números da população empregada, deveria implicar perceber onde e como foi que desapareceram esses empregos, e onde e como foram criados novos postos de trabalho, se é que isso aconteceu. É o que faremos adiante.
Mais subjectiva é a discussão sobre qual dos copos valorizar mais. Na minha perspectiva não duvido que, politicamente, os números que vão valer mais são os do desemprego, porque é dele que se esteve sempre a falar. E vão valer pelo que representam de surpresa: há um ano, mesmo há seis meses, ninguém – nem mesmo os mais optimista dos governantes – imaginaria possível que o desemprego tivesse baixado para estes números, menos ainda que fosse possível acabar a legislatura com números melhores que os legados pela anterior maioria.
É pois da ordem natural das coisas que PSD e CDS tenham saltado de alegria e que o PS tenha vindo falar de manipulação. Vale a pena, neste último caso, testar alguns dos seus argumentos.
Os argumentos, um por um
O primeiro é o de que há menos desemprego porque houve mais emigração. Fala-se mesmo em números estrastoféricos, como “500 mil emigrantes”, para mais, “emigrantes qualificados”.
Os números que o INE disponibiliza confirmam que houve mais emigração, mas desmentem os valores que têm vindo a ser apontados. Considerando a população média de 2011 e a população média de 2014, para as quais existem dados, o saldo migratório nestes quatro anos “piores do que os da década de 1960” ficou-se, afinam, pelas 128 mil saídas líquidas. Ou seja, entre os que saíram e os que entraram, o país perdeu, em média, 32 mil habitantes por ano neste consulado da troika. Foi mau mas estamos, parece-me, longe do apocalipse.
Mais: nestes quatro anos o país “ganhou” mais 93,3 mil reformados apesar de (segundo dados da Pordata), a idade média da reforma estar a subir desde de 2010, tanto no regime geral, como na Caixa Geral de Aposentações. Ou seja, há já um efeito demográfico na diminuição da população activa, pois como já temos mais 134 portugueses com mais de 65 anos por cada 100 com menos de 15 anos. Isto significa que há mais gente a sair do mercado de trabalho do que a entrar. Mas isso é toda uma outra discussão.
Um segundo argumento, avançado por Ana Catarina Mendes e relativamente novo, é que o o Governo estaria a colocar desempregados em ocupações de uma semana para estes desaparecerem das estatísticas. Será que é isso que está a acontecer? Não parece, olhando para as estatísticas do INE, onde esse tipo de ocupação teria de se reflectir na evolução da rubrica “subemprego de trabalhadores a tempo parcial”. Ora o que nos mostra este relatório é que, no 2º trimestre de 2015, houve menos trabalhadores nessa rubrica do que no trimestre homólogo de 2014: 242,8 mil agora, 252,2 mil nessa altura. Ou seja, a diminuição do número de desempregados no último ano – apesar de tudo, estamos a falar de 108,5 mil desempregados a menos – não pode ser explicada por esse “truque”, pelo que essa diminuição ocorreu mesmo.
Um terceiro argumento é o dos estágios: há menos desemprego porque o Estado anda a subsidiar empregos privados, diz a oposição. Primeiro que tudo, vamos aos números e, de novos, às declarações de Ana Catarina Mendes: “fala-se em mais de 70 mil estágios”, disse a dirigente socialista. Desta vez são os dados do Instituto do Emprego e Formação Profissional que a contrariam: em média, haverá 35 mil estágios a decorrer em simultâneo, pois há sempre estágios a começar e estágios a acabar. Para os números do desemprego, teremos então de considerar 35 mil “desempregados a menos” por via desta intervenção do Estado, metade dos indicados pela dirigente socialista.
Claro que se coloca a questão de saber se o Estado deve subsidiar empregos em empresas privadas. Para um liberal como eu, não deve fazê-lo, ou só o deve fazer muito pontualmente, até porque isso distorce a concorrência. Para os socialistas, deve fazê-lo o mais possível e foi isso que andaram a pedir anos a fio, para agora se queixarem.
Mesmo assim importa saber se estes estágios geram depois empregos reais, e sobre isso tem-se esgrimido com dois números: 33% dos estagiários ficam nas empresas onde fizeram os seus estágios, escreve-se num relatório recente do Tribunal de Contas; 70% dos estagiários estão empregados até seis meses depois do seu período de formação, tem dito o primeiro-ministro. Parece uma contradição, mas não é, pois estão a falar de coisas diferentes. Já o primeiro número, se fosse o definitivo, representaria 0 fracasso do programa. Em contrapartida o segundo número mostra um grau de sucesso relativamente interessante.
Afinal, onde é que se estão a criar empregos?
Mais interessante será ainda este programa de formação se se tratar de ajudar à criação de empregos para licenciados (aqueles que beneficiam de um subsídio maior no seu estágio). Não consegui obter dados detalhados, mas este ponto serve para introduzir o seguinte: em quatro anos de crise, há hoje mais licenciados empregados do que havia há quatro anos. É um detalhe importante e surpreendente que ninguém tem referido e que resulta bem evidente do seguinte quadro:
2ºT 20112ºT 2015Diferença
População empregada4799,44580,8-218,6
Até ao básico – 3º ciclo2967,32318,1-649,2
Secundário e pós-secundário939,51134,0194,5
Superior892,61128,8236,2
Ora aqui está um “efeito da crise” com que eu próprio não contava e que contraria muitos dos discursos dominantes. Aquilo a que assistimos nestes quatro anos é que os empregos que desapareceram foram os ocupados por trabalhadores menos qualificados, os que só tinham até ao ensino básico; e que até houve criação de emprego para os mais qualificados. O maior crescimento tem sido entre os licenciados: temos hoje mais 20% de licenciados empregados do que tínhamos há quatro anos. É um salto enorme, e que contraria a ideia feita de que se está a desperdiçar “a geração mais qualificada de sempre”.
Mesmo assim é preciso ter cuidado: ter mais licenciados empregados não quer dizer que existam mais empregos para licenciados, pois muitos estarão (estão) a ocupar empregos menos qualificados. O que nos leva à última questão desta crónica: onde foi que desapareceram os famosos 218 mil postos de trabalho?
2ºT 20112ºT 2015Diferença
População empregada4799,44580,8-218,6
Agricultura, produção animal, caça, floresta e pescas502,8365,3-137,5
Indústria, Construção, Energia e Água1297,11107,8-189,3
Serviços2999,53107107,5
Este quadro é tão ou mais interessante que o anterior. Se repararem bem, a soma dos postos de trabalho perdidos só na agricultura e na construção chegam para justificar o total de postos de trabalho perdidos, pois o que se perdeu na indústria ganhou nos serviços.
O que é que isto nos diz sobre o que se passou e o que pode vir a passar-se? Primeiro, que ocorreu uma mudança profunda na sector agrícola: entre 2011 e 2014, o chamado “PIB a preços de mercado na óptica da produção”, ou seja, o produto da agricultura, silvicultura e pescas, cresceu 5% mas o sector perdeu um terço do emprego que gerava. Aumento da produtividade? Passagem à reforma de muitos agricultores mais idosos? Aumento da economia informal? Não sei responder. Se calhar uma mistura de tudo isso. Mas algo é certo: estes são empregos que não regressarão.
Já na construção, o sector perdeu 35% daquilo que gerava, em termos de produto – foram-se as grandes obras públicas, e ainda bem, abrandou a construção de habitação nova, e ainda bem também –, e ao mesmo tempo perdeu 39% dos empregos que gerava. São empregos que também não devem regressar: não queremos mais desenvolvimento baseado no cimento e na construção civil, não queremos continuar a dar tiros nos pés.
Isto significa que o emprego que, como se costuma dizer com ar grave, foi “destruído”, era emprego que não tinha futuro ou viabilidade. Os sectores onde o emprego começa a recuperar, especialmente o dos serviços, como já se nota comparando trimestres homólogos, 2015 com 2014, são os que têm futuro.
Para além do copo meio cheio ou meio vazio
O que também nos dá uma pista sobre o que queremos para depois de Outubro – o que pedimos ao próximo Governo. Isto tanto mais que, e a notícia também foi dada também esta quarta-feira pelo INE, as empresas exportadoras, excluindo o volátil sector dos combustíveis, reviram em alta a previsão de crescimento das exportações em 2015, que subiu para 4,5%.
Olhar para os números do emprego e do desemprego com mais detalhe é pois bem mais útil do que a discussão do copo meio cheio ou do copo meio vazio. Permite perceber que alguma coisa de estrutural está a acontecer no nosso mercado de trabalho, e que não vale a pena sonhar com o regresso ao passado – com o regresso, por exemplo, do investimento na construção e nos empregos que aí desapareceram, pois não é esse o caminho.
Bem sei que o desemprego ainda é elevadíssimo, mas tenho de reconhecer, e aplaudir, estarem a ser criados mais postos de trabalho para os mais qualificados (havia mais 64 mil licenciados empregados no segundo trimestre 2015 do que no período homólogo de 2014), o que é bom. As chamados “políticas activas de emprego”, como os estágios, contribuíram para isso? É bem possível, e ainda bem, desde que não se eternizem (mas isto sou eu que digo, que não sou socialista).
Por isso, que tal deixar de lado a espuma e as suspeições e olhar para esta realidade nova que está a surgir diante dos nossos olhos, mesmo daqueles que se recusam a ver – a realidade de uma economia que gera melhores empregos, para os mais qualificados, e onde ocorreram mesmo mudanças estruturais com a viragem de tantas e tantas empresas para os mercados de exportação? Sendo que isto não é obra de nenhum Governo, mas de milhares e milhares de portugueses que perceberam que houve um certo mundo que acabou em 2011 e não deve, não pode, regressar.
* Nota: Este artigo foi atualizado, com as revisões de séries feita pelo INE com recurso ao Census 2011

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