Esquerda

João Paulo Almeida Fernandes
Observador 10/8/2015

Considero aberrante e profundamente chocante a arrogância com que alguns afirmam que a esquerda é a única que se preocupa com os outros, com a infelicidade, o mal-estar e a miséria.
Num texto recentemente publicado neste jornal, exprimia a minha angústia acerca da diferença que se tem vindo a acentuar, entre ser de esquerda e ser da esquerda. Esse texto decorreu de uma vida em que sempre foram óbvios para mim os valores da liberdade, individualidade, no mesmo plano, naturalmente, da atenção, da solidariedade e da responsabilidade. Sempre atribuí esses valores ao ambiente em que cresci e que, formal ou informalmente, sempre consideramos como sendo de esquerda.
Essa classificação óbvia, começou a ser questionada no meu espírito, quando observei que a prática dos que, oficialmente se assumiam como da esquerda, fosse ela moderada ou não (e sobre esta última não me pronuncio, porque prossegue valores e práticas que a colocam ao nível do todos os totalitarismos de direita ou religiosos que temos vivido nos últimos séculos), obedecia muito menos a valores e muito mais a interesses.
Começou assim a minha crise, em que me consciencializei, à semelhança do que acontece no meu domínio de especialização profissional, de que o mundo não é preto ou branco nem se desenvolve apenas segundo uma linha em que só se pode seguir num sentido ou no outro. O mundo é muito mais do que isso e encerra muitos mais domínios de liberdade e de afirmação do que as velhas e dogmáticas dicotomias, que derramaram no século passado sangue de centenas de milhões de seres humanos sobre o solo deste planeta, que devia ser a nossa casa comum como tão bem foi designado no relatório da Comissão das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento de 1987.
Simultaneamente, considero aberrante e profundamente chocante a arrogância com que alguns afirmam que a esquerda é a única que se preocupa com os outros, com a infelicidade, o mal-estar e a miséria. Essa afirmação chocou-me, pois recordei figuras sublimes e não necessariamente de esquerda, que vão desde os simples e anónimos voluntários dos hospitais, que tantas vezes me apoiaram e apoiaram familiares, amigos e conhecidos meus, a figuras como Albert Schweizer ou Raoul Folereau, que encontraram na sua religião ou, simplesmente, na sua disponibilidade para ajudar, para segurar a mão do moribundo ou do miserável, para apoiar o dependente ou apenas para ouvir o solitário, o sentido que justifica as suas vidas. Nenhum deles precisou de uma bandeira a afirmar que pertencia a um lado ou outro do espectro, bastou-lhes ser e fazer. E por isso lhes agradeço por mim e pelos que eles apoiaram.
Por pensar isto tornei-me de direita? Não, não sei, nem me interessa.
O que me interessa são os valores pelos quais conduzo a minha vida e que procuro transmitir aos meus filhos e, de alguma forma, aos meus amigos, alunos e aos estranhos com quem me cruzo numa rua, num café ou num qualquer lugar.
Esses valores têm a ver, como já anteriormente referi, com a atenção, a atenção aos outros, que começa no simples dar a passagem na rua ou numa porta, até ao assumir as responsabilidades dos meus actos ou dos actos daqueles que, por omissão minha, prejudicaram alguém.
Atenção no sentido de liberdade, não liberdade abstracta, slogan vazio, mas liberdade de, responsavelmente, poder decidir sobre os meus interesses, na certeza de que, se prejudicar os de outros, serei por isso penalizado e responsabilizado, sem precisar de um estado tutelar e arbitrário a ditar-me quais devem ser os comportamentos “adequados” para já não dizer “correctos”.
Atenção no sentido de reconhecer aos outros a liberdade de serem diferentes. Atenção no sentido de não ter a arrogância de afirmar saber o que é bom e o que é mau, mas tão somente, de procurar garantir que através da postura a ou b se garante a saúde e o bem-estar do outro, seja ele humano ou qualquer outro ser vivo.
E, neste domínio, ocorrem-me vários exemplos destas dicotomias rígidas e dogmáticas.
Tomemos, por exemplo, os instrumentos de ordenamento do que foram concebidos para garantir uma adequada utilização e valorização dos recursos naturais em paralelo com a promoção e qualificação dos usos sociais e económicos, constituem hoje espaços de afirmação de poderes discricionários e janelas de corrupção. Com efeito, a nossa cultura legal e política, essencialmente regulatória, condiciona de tal forma a liberdade de expressão individual e colectiva, que necessita de criar janelas de arbitrariedade: “em casos omissos ou excepcionais, caberá à autoridade responsável, decidir no sentido que tiver por melhor”. E falam de corrupção e do seu combate à chegada, quando é na lei que está toda a sua razão de ser e o seu ambiente óptimo de desenvolvimento e expressão!
Continuemos pelas inúmeras figuras de avaliação, fiscalização e licenciamento, que se vão constantemente adicionando às já existentes, “porque o domínio a ou b são muito relevantes”, sem nunca se procurar criar um todo coerente, porque tal constituiria abdicar de pequenos e de grandes poderes discricionários. E tudo no sentido de proteger e preservar valores, sejam eles ambientais, culturais, estéticos, económicos, sociais ou o que seja!
O resultado é que ninguém compreende esses valores e, bem pelo contrário, sente-se violentado por essas formas arbitrárias de decisão e de constrangimento da sua liberdade. E, os valores que se pretendiam proteger, porque os que com eles diariamente convivem não os sentem como seus e como fonte de prazer e gratificação, mas antes como motivos para a intromissão de agentes muitas vezes arrogantes e autoritários, limitadores da sua liberdade de viver e gerir, vão progressivamente desaparecendo por falta de cuidado e atenção. Tudo isto porque, novamente, a nossa cultura jurídica e política se foca no controle, limitação e hiper-regulamentação, retirando aos cidadãos o mais importante valor da cidadania – a responsabilidade, baseada no conhecimento de causa, na consciência dos actos e das suas consequências.
O mesmo se passa com a liberdade. A liberdade corresponde, como escrevia já na década de 70 o neuropsicólogo Henri Laborit, “a possibilidade de realizar os actos que nos são gratificantes, de realizar os nossos projectos, sem comprometer ou entrar em conflito com os projectos dos outros” ou de os impedir, por sua vez, de concretizar os actos que lhes são gratificantes. Neste quadro não existem outros limites à nossa expressão individual e colectiva, que aqueles que limitem a expressão individual e colectiva dos outros. É isto que defensores do alegadamente “politicamente correto” esquecem, e que os transformam nos novos senhores do lápis azul, já não coronéis reformados, mas intelectuais incapazes de reconhecer o direito dos outros, à expressão de opiniões distintas das suas e de ter outras perspectivas do mundo que não as suas.
Mas quando falamos de limites e de leis que os impõem, apenas estamos a falar, ao nível das sociedades, das leis que procuram de alguma forma regular as tais afirmações de liberdade individual. Não podemos com isso entender que a lei deve ser o absoluto regulador da nossa existência e que acima da nossa liberdade, deve estar um Estado tutelar, que tudo controla e ordena. Particularmente, quando se entende, como acontece com muitos opinadores que as razões desse estado se situam, exclusivamente, do seu lado da tal linha direita/esquerda.
Mas este não é o fulcro do que aqui queria reflectir. Toda a minha vida foi conduzida, na medida do possível, e das minhas limitadas capacidades, pela procura da afirmação de valores e de práticas que garantissem um futuro melhor para os meus filhos, que nos emprestaram a Terra em que eles viverão e que nós temos a obrigação de legar, não só em bom estado (desejavelmente melhor do que aquele que encontrámos como disse Baden Powell fundador do Escutismo),  mas essencialmente povoado por sociedades que fundamentam o seu progresso na afirmação da sua identidade, mas também na incorporação do que de positivo perceciona nas identidades dos outros.
É isto que me choca nas tomadas de posição fanáticas de quem se sente dono da verdade e despreza qualquer valor ou posição que não se submeta a essa visão do mundo. Choca e revolta, porque foi aceitando e seguindo posições como estas, todas elas bem-intencionadas, fossem elas de esquerda ou direita, começaram por se apropriar da totalidade da liberdade dos indivíduos e das sociedades, prosseguiram pela selecção dos que achavam desajustados e pela sua eliminação e terminaram em banhos de sangue, fosse ele em guerras mais ou menos mundiais, fosse ele no espaço restrito do seu país ou região, sob o olhar envergonhado e mesmo cooperante pela inércia (lembremo-nos do Ruanda ou de Sbrenica).
Dirão, não é isso que está em causa, mas sim a afirmação enfática de valores e de perspectivas. Desculpem, a forma, o conteúdo e também, muitas vezes a prática, são as mesmas que estiveram na raiz “de os fins justificam os meios”.
Eu também valorizo e afirmo o meu sentido de vida, mas nunca o pensaria impor a ninguém. Não sendo crente, fiquei extremamente feliz quando a minha filha descobriu a Religião. Feliz, porque ela o fez em total liberdade e na plena afirmação da sua individualidade. Essa liberdade e essa afirmação da individualidade são, junto com a responsabilidade, as bases do meu sistema de valores.
Assumo-o, desisti de o qualificar, porque sei que o espaço dos nossos espíritos é pluri-dimensional e não preciso de me pôr num lado de uma linha para me identificar. Para isso estão lá os meus valores, os meus desejos, o meu respeito pelos outros e o meu objectivo central de não defraudar os meus filhos, que empenhei ao futuro da humanidade quando decidi com a minha mulher assumirmos o enorme dever da paternidade.

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