A ditadura da infância mais que perfeita

Helena Matos | Observador 2/8/2015

É um dos meu terrores: discutir políticas de natalidade. Mal ouço a expressão, sempre dita com um ar solene, por pivots e políticos, é como se estivesse diante mim o Obélix a perguntar ao Astérix qual era o papel das abelhas e das cegonhas no aparecimento dos bebés.
As políticas de natalidade são as novas cegonhas: oficialmente trazem os bebés. Mas tal como jamais se viu um bebé no bico de uma cegonha (e a minha geração bem que se esforçou por tal avistamento!), está por encontrar o primeiro bebé nascido graças àquilo a que pomposamente se chama políticas de natalidade. Ou então, se alguns bebés nasceram graças a essas políticas, nomeadamente aquelas que passam por mais abonos e subsídios, cabe perguntar que mal fizeram essas crianças e os demais cidadãos para terem de conviver com pessoas que têm filhos se lhes pagarem para tal.
Claro que há circunstâncias que ajudam quem tem filhos, como as licenças e os horários flexíveis, mas infelizmente entre nós desapareceu mais rapidamente o papel selado que a rigidez dos horários de trabalho! Fundamental seria também acabarmos com a maldita cultura do presentismo que leva umas almas sem mulher, homem, gato, cão, periquito ou livro que lhes apeteça rever em casa, a reproduzir na hora de sair do trabalho o síndroma “eu não hei-de ser o primeiro a parar” dos congressos estalinistas: ali ninguém parava de bater palmas, aqui ninguém se levanta para sair e empatam, empatam, tentando desse modo provar que trabalham muito.
A única forma socialmente aceitável de quebrar o presentismo é anunciar que se tem o gato ou o cão doentes. Ou a precisar de passear. Aí todos se mostram solidários. Já se for por causa de um filho é sempre um escolho, uma questão a ter em conta na hora de atribuir àquela pessoa um cargo de responsabilidade. Afinal não foi ela irresponsável q.b. para ter avançado para tal encargo apesar de todos os avisos sobre o entrave para a carreira que os filhos representam?
(Se discutir as políticas de natalidade faz parte dos meus terrores o termo carreira aplicado à profissão é um dos meus ódios de estimação. O que é uma carreira? Percebo a carreira dos eléctricos, das camionetas e dos autocarros. Mas o que será a carreira do condutor desses transportes? E de ser caixa de supermercado? Ou jornalista? O que será essa coisa chamada carreira em nome da qual é suposto que se abdique de tudo? Regra geral, chamamos carreira a empregos pagos assim-assim, desempenhados por pessoas mais ou menos irrelevantes que se acreditam insubstituíveis. O resto são trabalhos, empregos ou cargos, transitórios como tudo na vida, e para cujo desempenho ter responsabilidades familiares, seja de filhos ou outras, é um valor acrescentado de realidade.)
Mas voltemos às neocegonhas, ou seja, às políticas de natalidade. Sei por experiência própria como as circunstâncias económicas, o presentismo e a rigidez laboral condicionam a vida de quem tem filhos. Sobretudo de quem não se ficou pelo casalinho e teve de ouvir os sábios “Já pensaste?!…” Mas a grande condicionante deste século XXI na hora de ter filhos chama-se complicadismo, conceito que traduzido de forma simples quer dizer que a maternidade deixou de ser algo natural na vida dos jovens adultos para se tornar na mais temerosa das tarefas a que alguém pode meter ombros.
Face ao espalhafato criado em torno da maternidade e da paternidade o que me admira não é que as pessoas tenham menos filhos. O que não entendo mesmo é como ainda existe gente com coragem para meter ombros a tal empreendimento.
Ter um filho tornou-se uma tarefa imensa. Um saber-ciência algures entre a exactidão das matemáticas e a imprevisibilidade do mundo do oculto em que cada sinal de febre, birra, más notas ou grama a mais é um sinal inequívoco do falhanço dos pais em geral e das mães em particular. Tudo o que as crianças fazem e não fazem, tudo o que não lhes aconteceu e devia ter acontecido (ou vice-versa) é visto, analisado e ponderado como o resultado daquilo que os pais disseram, deram e fizeram. A gravidez tem de ser perfeita, o parto um momento sublime, a amamentação um equivalente da demanda do Santo Graal que nunca se sabe como deve terminar, a introdução dos alimentos uma viagem ao mundo dos produtos sem isto e sem aquilo. Caso isto não se cumpra no seu todo ou em parte lá vêm a perturbação, a disfunção e outras coisas tenebrosas já conhecidas e por conhecer.
Angustia-me pensar o que vai ser destes pobres pais e dos seus filhos no dia em que estes últimos tenham finalmente de sair da escola A onde as crianças só comem legumes biológicos; ou da escola B onde aprendem por um método natural (nas outras, as não naturais enfiam-lhes um capacete e ligam-lhes eléctrodos à cabeça!) e do sítio C onde como actividade extra-curricular se ensina filosofia a crianças que ainda não têm a dentição de leite completa.
Esta ditadura da infância perfeita é das coisas mais assustadoras que me foi dado ver e tudo indica que veio para ficar tanto mais que proliferam os filhos únicos. (E só Deus sabe os trabalhos e complicações que uma mulher em dedicação exclusiva a um ser humano é capaz de inventar!) Para cúmulo os nados e criados nesse espaço-tempo da infância perfeita tendem não só a manter-se como eternas crianças – já viram aqueles matulões compêlos a despontar nas pernas e umas mães ansiosas a puxarem-lhe a mala de rodinhas? – como a acreditar com convicção que todos os outros devem condicionar as suas vidas e atitudes para que eles não se traumatizem.
No Observador até vinha esta semana uma lista daquilo que os pais não devem fazer para não envergonhar os filhos. Supõe uma pessoa que seriam referidos actos como roubar, burlar ou não cuidar da família. Nada disso. No limite creio que até matar não constrangeria muito os inquiridos desde que os progenitores não disparassem sobre leões. (Já agora, o leão Cecil era lindíssimo e não percebo o prazer de disparar sobre leões. Mas ao contrário dos habitantes humanos do Zimbabwe, o leão Cecil teve comparativamente uma vida longa que, acrescente-se, na Natureza terminaria de uma forma não menos cruel.)
Mas voltemos aos pais que envergonham os filhos. Entre outras coisas devem os pais evitar dançar na presença dos filhos ou simplesmente cantar na cozinha. É que face a esses comportamentos os filhos que claro cantam e dançam o que lhes apetece e quando lhes apetece, ficam envergonhados. E logo traumatizados, e logo com problemas afectivos. Só não percebi se os pais podem ousar essas manifestações longe do olhar dos filhos ou se mesmo assim estes ficam consternados porque outros os podem avistar em tais atitudes.
Enfim, tal como no pretérito tempo em que as cegonhas traziam os bebés, um bocadinho de realidade faz muita falta. E já agora uma boa dose de bom senso ajudaria à demografia muito mais que as políticas ditas de natalidade.

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