A Guerra dos Sofás

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.08.19

O carácter de cada época fica gravado nas obras de arte que deixa. Pirâmides egípcias e catedrais medievais, frescos renascentistas e teatro clássico, novelas vitorianas e cartazes maoistas definem cada cultura melhor do que as alternativas.
Quem quiser conhecer o último século tem de considerar sobretudo a sétima arte, com a nossa identidade espelhada no cinema e na televisão. A prosperidade dos anos 1950 e 1960 vê-se na euforia ingénua das superproduções do pós-guerra, a angústia dos anos 1970 e 1980 nos torturados filmes psicológicos. Hoje poucos sucessos são tão reveladores da especificidade do momento como a série Game of Thrones da HBO, traduzida como A Guerra dos Tronos. A adaptação televisiva da obra ainda incompleta de George R.R. Martin A Song of Ice and Fire (1996, 1998, 2000, 2005, 2011 e futuros) é, independentemente da forma como se avalie, um dos maiores êxitos dos nossos dias. Ela aliás constitui apenas um exemplo destacado de um estilo bem mais vasto, multiplicado em sequelas, cópias, livros, jogos, bandas desenhadas e sites. Bem analisada, pode dizer-nos muito sobre a mentalidade da sociedade ocidental.
O primeiro elemento notório é a dimensão. Como nas telas barrocas e orquestras românticas, há medida que o tempo passa as obras cinematográficas vão ficando maiores, numa crescente embriaguez ficcional. Inicialmente uma epopeia era um filme grande, como E tudo o Vento Levou (1939), Ben-Hur (1959) ou Patton (1970). A pouco e pouco foi passando a ser um pequeno conjunto de filmes, como O Padrinho (1972, 1974, 1990), Matrix (1999, 2003, 2003) ou O Senhor dos Anéis (2001, 2002, 2003). Entretanto surgiam epopeias com número indefinido de filmes, como Rocky (1976, 1979, 1982, 1985, 1990, 2006, 2015, ...), Star Wars (1977, 1980, 1983, 1999, 2002, 2005, 2008, 2015, ...) ou Terminator (1984, 1991, 2003, 2009, 2015, ...).
Aqui, porém, trata-se de algo muito maior: um número indefinido de séries de dez episódios. Isto revela profusão e prosperidade. Uma coisa deste tamanho só consegue ser vista por fãs dedicados. O que significa que existe um número suficientemente grande de pessoas com dinheiro e tempo bastantes para pagar uma produção luxuriante. A simples sobrevivência de um projecto tão grandioso mostra como, apesar dos lamentos pelas crises, vivemos num tempo de vasta abundância e dissipação.
O segundo aspecto é o estilo: a era da internet rendeu-se a uma fantasia medieval. Inesperadamente, porém, a fantasia é bastante moderada. Existem dragões, mágicos e monstros, mas com um papel muito inferior no enredo que nos filmes de Harry Potter (2001, 2002, 2004, 2005, 2007, 2009, 2010, 2011), ficção científica ou dos pululantes super-heróis. A ênfase da história está toda nas intrigas palacianas, jogos eróticos, batalhas e assassínios. Isto leva-nos ao aspecto mais marcante da obra, o alto grau de crueza em sexo e violência. O nível chega a chocar um público que se achava habituado a tudo. O autor diverte-se a quebrar as regras do género, sacrificando os seus sucessivos heróis numa orgia de lúbrica bestialidade.
Será isto inaudito? Este tipo de baixeza e devassidão é bem conhecido a quem leu a História dos Francos de São Gregório de Tours, terminada no ano 594, a Crónica Geral de Espanha, encomendada por Afonso, o sábio de Castela (1221-1284), ou as sagas dos vikings. Será que Martin se limita a ser historicamente plausível? São os espectadores actuais atraídos apenas pela realidade humana de épocas imemoriais?
Existe um pequeno detalhe que manifesta uma diferença fundamental de atitude. Não há dúvida de que este nível de barbaridade se encontra presente nos livros de história medieval; mas não na ficção medieval. A Canção de Rolando, Tristão e Isolda ou os romances da Távola Redonda são mais parecidos com as superproduções moralistas da época áurea de Hollywood do que com A Guerra dos Tronos.
Os antigos tempos de miséria e tumulto estavam cheios de sangue e lascívia. Mas, mesmo no fundo dessa torpeza, as pessoas guardavam os seus ideais, e aspiravam a uma vida elevada, pura e digna. O horror era o que eram, não o que pretendiam.
A popularidade de espectáculos como este liga-nos às brutais épocas feudais, mas também nos coloca no extremo oposto. Trocamos a história com a ficção. O mundo actual tem muito horror e violência, mas pouco nas regiões onde passa a série. Aí é um pacato quotidiano de autocarros, telemóveis, sanduíches e T-shirts que, no conforto das pipocas e do sofá, se diverte a ver esventrar soldados e visitar lupanares.

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