As cartas de Costa

Inês Teotónio Pereira, ionline, 20150830

Diga-me cá, caro amigo, porque é que não escreveu “Caras e caros amigas”? 

Ah, pois é… o computador deu erro, queres ver?
Para quem ainda está a banhos como eu e se preocupa quase exclusivamente com o estado do tempo e com o estado do mar, as cartas de António Costa chegam-nos tarde, sem cronologia, sem contexto e, de alguma forma, abruptamente. Li uma delas ao calhas. Caiu-me no computador num dos dias em que apanhei wi-fi gratuita, mas escapou-me a data. A carta que li é intemporal. Fala de empobrecimento, do esforço que a direita faz todos os dias para empobrecer o país, de como PS vai criar empregos para todos e para todas e fala de cultura e de inovação. A carta pode ter 20, dez ou apenas quatro anos. Não sei, escapou-me a data. O vazio, como se sabe, não tem data, não tem princípio nem fim. Não precisa. 
Li a carta do princípio ao fim e fiquei com várias dúvidas. Sobre o conteúdo propriamente dito, e tendo em conta que todos os dias leio livros infantis ao meu filho de dois anos, acho que percebi tudo – amor, esperança, cultura, confiança, cool, cenas fracturantes e depois logo se vê quem paga a conta. Não há novidade. A minha principal dúvida tem a ver com a utilidade da carta. Os meus filhos, por exemplo, escrevem cartas porque os professores mandam, porque são obrigados e porque está no currículo do primeiro ciclo. Mas tirando os professores, já ninguém lê cartas. Por isso, a minha primeira dúvida tem a ver com o objectivo final da missiva: para que raio é que isto serve? Quem é que vai votar no PS por causa de cartas como estas? Quem é que as vai ler sem ser por obrigação profissional ou para gozar? Além da família e amigos mais próximos, claro. Não faz sentido. 
A minha outra dúvida, mais séria, tem a ver com a igualdade de género. Dr. Costa, tinha o dr. Costa escrito estas cartas no Brasil ou nos EUA e já tinha manifestações à porta de sua casa, de organizações do tipo ILGA a pedirem a sua cabeça e sabe-se lá mais o quê. Então não é que o senhor começa as cartas com “Caras e caros amigos”? Ora isto nos dias de hoje não é admissível. Num mundo onde se discute a terceira casa de banho e que anseia pela proliferação de géneros de forma a igualar o número de géneros de seres humanos à variedade da pêra, vem o senhor dirigir-se aos eleitores, eleitoras e outros com um simples caras e caros amigos. E nem sequer inclui as amigas. Acha que eu sou sua cara amigo? Incrível. Isto revela algum machismo, algum complexo cultural, resquícios de uma educação quiçá conservadora ou, pior, ainda vamos descobrir que tem um tio-avô católico, monárquico ou até marialva. Uma vergonha. Diga-me cá, caro amigo, porque é que não escreveu “Caras e caros amigas”? Ah, pois é… O computador deu erro, queres ver? Pois o mínimo era ter escrito “Caras e caros amigas e amigos, respectivamente”. Menos do que isso parece-me um insulto a todos e a todas as suas caras amigas, aos seus caros amigos e a outros e a outras que não são uma coisa nem outra. Um insulto a todos os que votaram em si para a Câmara de Lisboa e até a toda uma Juventude Socialista reaccionária, rebelde, moderna, que quer fracturar tudo o que sejam causas fracturáveis (ou isso ou cargos na administração pública). Pois foi isto que me indignou na carta que escreveu. A traição aos seus amigos, amigas e outros. Aos seres humanos, vá. 
Outra dúvida que as missivas me causaram (já vão em cinco, verdade?) tem a ver com o local. Então, segundo se pode ver nas cartas, o senhor mudou-se de Lisboa para Fontanelas a determinada altura da semana. Diga--me cá, de quem foi a ideia de escrever que nos está a escrever de Fontanelas? A quem interessa isso, meu Deus? Diga-me, a sua ideia é escrever um diário de ideias ocas ou cartas ao pessoal indeciso que, a cada carta sua, fica menos indeciso e mais decidido a votar noutro partido qualquer? Ora aqui vão dois conselhos de amiga: escreva sempre de Lisboa (Fontanelas é distrito de Lisboa e convenhamos que apesar de ser lá perto, não é Nafarros…) e tenha cuidado com a questão do género. Se continua assim, a sua JS ainda se passa para o Nós Cidadãos, para o Livre ou, quem sabe, até para o PAN.
Boa sorte, caro amigo. 

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