Horror às privatizações
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.0826
Existem fortes movimentos de oposição às privatizações. É verdade que a população em geral não se interessa pelo tema. Afinal, há quase 30 anos que se sucedem as vendas de activos produtivos por parte do Estado, sem consequências significativas. Certas vozes porém, sobretudo na esquerda, insistem no repúdio liminar, em cartazes, inscrições e petições. O mais curioso é que isso subverte a sua própria posição doutrinal.
Claro que a alienação de empresas grandes é sempre complexa, e cada caso é um caso, com vantagens e inconvenientes. Os críticos têm, pois, muitas vezes razão. O aspecto interessante, porém, é que eles são contra mesmo quando não a têm. A sua oposição é genérica e global. O motivo é evidentemente ideológico. Acham que público é bom, simplesmente por o ser, e privado perverso em si mesmo; tal como há quem defenda o oposto. Esse é, aliás, o motivo porque essas discussões se incendeiam, acusando a outra parte de interesses sinistros. Há mesmo quem considere que os adversários são monstros acéfalos, alucinados por propósitos macabros ou doutrinas perversas. A simples acusação de neoliberal ou esquerdista condena, dispensando os argumentos.
Abandonando estas explicações simplistas, baseadas na preguiça intelectual, é preciso olhar para o fundamento objectivo. Considerando os casos concretos é fácil constatar como esta posição simplista contradiz muitas vezes a própria orientação doutrinal. Alguns casos são mesmo caricatos: os activistas que se têm esforçado para comover a população acerca da perda da "nossa" TAP, certamente não consideram bem o que dizem.
A companhia aérea é pública desde a sua fundação, mas o povo português pagou, com os seus impostos, fortunas colossais para manter esse "privilégio". No momento da venda, a dimensão da dívida e o reduzido encaixe do Estado mostraram bem como o negócio era ruinoso. É verdade que isto pode ser dito infelizmente de muitas outras empresas a privatizar, sobretudo nos transportes e comunicação. A diferença aqui é que o serviço da TAP não beneficia a generalidade da população, mas apenas os poucos que andam de avião. Quando todos pagam para ganharem, sobretudo os ricos, como se entende que partidos radicais e forças socialistas estejam tão afogueados a manter este sorvedouro de dinheiros públicos?
As lógicas invocadas não convencem. O facto de se tratar de produtos essenciais à vida social, aliás duvidoso em muitos casos, levaria também a nacionalizar padarias, habitações e pronto--a-vestir. Os verdadeiros bens de primeira necessidade estão entregues à iniciativa privada desde sempre, sem que isso gere problemas. É verdade também que existem razões bem estabelecidas para a regulação pública de certos mercados, sobretudo infraestruturais e quando estão em causa problemas de concorrência, desigualdade, acesso e outros. Mas é também patente que essa intervenção governamental não implica a propriedade e gestão estatais, sempre prejudicadas por dificuldades operacionais, podendo ser exercida através da simples autoridade publica. Há muito que, além da sempre possível intervenção directa dos ministérios, existe um conjunto de entidades reguladoras, para acautelar precisamente os interesses nacionais em certos sectores.
Qual é afinal a origem de ânsias tão alvoroçadas contra a privatização? A verdadeira razão é o oposto do que dizem. O princípio mais invocado é que a empresa pública serve a população enquanto a privada quer o lucro do patrão. Só que esta generalidade esconde uma realidade ambígua. O sucesso empresarial vem só da satisfação do cliente, o que domina a ganância capitalista, gerando um equilíbrio que reduz os medos retóricos. Por outro lado, o serviço público é frequentemente capturado por certos interesses particulares que beneficiam muito à sombra do Estado.
Eis o busílis! Não são os utentes que protestam contra a privatização, mas os funcionários e fornecedores da empresa vendida, dizendo agir em nome do público. Fazem-no porque essa alienação manifesta e compromete as benesses, regalias e negócios que os participantes nas empresas públicas, dizendo-se servidores do Estado, conse- guiam extrair, à sombra dos impostos e protecção legal. É daqui que nasce a fúria antiprivatização.
O que gera outra conclusão. Na oposição militante à venda de empresas públicas mal geridas, os movimentos de esquerda manifestam estar dominados, não pelos interesses da população, e ainda menos dos proletários, mas pelas conveniências de um funcionalismo burguês, fingindo-se revolucionário.
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