Nós e o fisco

JOÃO MIGUEL TAVARES Observador 18/08/2015

O texto que publiquei na semana passada acerca das minhas desventuras com a Autoridade Tributária (AT) provocou inúmeras reacções, e a quantidade de gente que se solidarizou comigo e partilhou a sua própria história infeliz com a AT é uma demonstração clara de que o assédio fiscal é hoje uma prática generalizada em Portugal. Ainda que algumas pessoas possam estar zangadas por más razões (antigamente conseguiam escapulir-se ao fisco e agora já não), a esmagadora maioria dos leitores – ou, melhor dizendo, dos contribuintes – que me abordaram para partilhar a sua indignação queixavam-se não tanto do que pagavam, mas da forma como eram sistematicamente maltratados pelas Finanças.
E esse era, de facto, o ponto essencial do texto. Houve leitores maldispostos que me acusaram de estar a aproveitar a última página do PÚBLICO para me queixar de problemas pessoais, mas a verdade é que a tese central da crónica não estava relacionada com a falta de prazer que a minha prosa proporcionava à AT (embora a invocação de um critério de gosto para efeitos fiscais me pareça francamente bizarra e seja igualmente um bom tema de debate, como o demonstraram os artigos do Expresso e do Diário Económico), antes com o tratamento subsequente que me tem vindo a ser dado, após o caso dar entrada em tribunal.
Se no caso particular dos direitos de autor e da criação artística e literária se pode invocar que a lei é dúbia e passível de múltiplas interpretações, nada justifica que eu continue a receber mails ameaçadores da AT após o caso ser entregue nas mãos da justiça. Mais: este fim-de-semana cheguei a casa vindo de duas semanas de férias e tinha três cartas da AT a informarem-me de que o valor que tinha a receber pelo IRS de 2014 tinha ficado retido. Motivo: “Aplicação do crédito em dívidas de execução fiscal”. Ou seja, apesar de eu estar à espera que os tribunais decidam acerca do meu conflito com as Finanças e de ter sido obrigado a apresentar caução da totalidade da dívida mais 25%, o fisco, pelo sim, pelo não, continua a embolsar anualmente o dinheiro que me é devido após a liquidação do IRS. Com alguma sorte, quando chegar ao julgamento a dívida já não existe.
Ao serem confrontados com estas histórias, os meus camaradas liberais não têm piedade e acusam o meu texto original de encerrar em si uma contradição insanável. Escreveu André Azevedo Alves no Observador, após lamentar o tratamento que me tem sido dado pelo fisco: “Não se compreende é que Tavares celebre ‘efusivamente o aperto da malha tributária’, sem se dar conta de que está a enfrentar as consequências daquilo que tão efusivamente celebra.” E acrescenta: “Os objectivos de efectiva maximização do saque fiscal tudo justificam e sobrepõem-se frequentemente aos mais elementares direitos dos cidadãos e aos mais básicos princípios de decência.”
Ora, não me parece inevitável que o aperto da malha tributária tenha como consequência directa o abuso dos direitos dos cidadãos. Se assim fosse, estaríamos condenados a escolher entre dois estados de coisas: o de antigamente, em que quase só os trabalhadores por conta de outrem pagavam os impostos devidos; ou o de hoje, em que todo o contribuinte é gatuno por defeito. Se for preciso, invoquemos Santo Onofre, padroeiro dos bêbados e do dinheiro: há-de ser possível encontrar um caminho intermédio entre roubar o Estado e extorquir o contribuinte. É esse caminho que eu desejo percorrer – e desconfio não ser o único.

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