A digestão
JOÃO TABORDA DA GAMA
DN 20150820
Celebram-se por estes dias sete anos de uma das maiores conquistas civilizacionais da humanidade: a abolição da digestão. Pelo menos lá em casa. Foi libertador. Acabaram-se as três horas e meia de digestão, duzentos e dez minutos de eternidade à espera de nada.
Como se pode ler nas costas de qualquer envelope, o português médio passou um mês na praia entre os seis e os 16 anos. Três horas e meia de digestão, 30 dias, dez anos - mil e cinquenta horas, 43, quase 44 dias inteiros à espera. Não podes ir já para a água. Ou à água. Ou ao banho. Três horas e meia, contadas por relógios de adultos, podem ser mais ou menos do que duzentos e dez minutos. As crianças sabem bem, muito bem, que vale a pena perguntar muitas vezes se já são horas de qualquer coisa, porque quando essa coisa depende de autorização dos pais, a insistência na pergunta encurta a distância até à coisa, ai encurta, encurta. Mesmo com risco de vida.
A congestão era a causa do embargo hidrológico de três horas e meia. Mas a congestão, esse adamastor estomacal, afinal não existe. Era um mito científico, um erro de boca em boca, de família em família, alimentado pela história do Carlinhos que tinha morrido afogado porque não tinha obedecido aos pais e tinha ido nadar depois de comer duas pratadas de arroz de marisco, em Tavira, há cinco anos , ainda por cima com o mar chão, só pode ter sido congestão.
Mas, segundo os médicos, não existe qualquer risco em tomar banho ou nadar depois de comer. Zero. Niente. Nada (à vontade). A imprensa portuguesa continua a noticiar mortes por congestão (por exemplo, no Expresso de dia 16, ainda nem a tinta das letras secou), o que não ajuda a acabar com o mito, e muitas famílias, mesmo as mais jovens, ainda cumprem a digestão. As mortes por afogamento são um problema grave, e até por isso é muito recomendável a preocupação com as suas verdadeiras causas. Se o comer não mata, já o beber não é a mesma coisa, e está provado que muitos dos afogamentos se devem ao consumo excessivo de álcool. Aliás, pode vir do vinho a construção do mito da congestão, por tornar afoitos ao mar aqueles que por não saberem nadar de outra forma não se atreveriam - e como esta aquaticidade movida a vinho vinha depois de uma boa refeição, vai uma nação deitar as culpas no comer, e não no beber, que isso era deitar as culpas em dez milhões de portugueses.
Mas o melhor desta era dominada pelo conhecimento gastrológico estava nas várias nuances da digestão: a digestão não começava logo, se fores já já tomar duche não morres que a digestão só começa 20 minutos depois de acabares de comer (o mesmo para um gelado, logo logo depois de comer). A temperatura da água também não era indiferente, muito fria matava, muito quente matava, mas havia ali um ponto de tépido, fácil de alcançar na banheira, quase impossível na natureza, em que não fazia mal nenhum à digestão porque era à temperatura do corpo. Evitava-se aquele choque térmico que matava. Aliás, quanto à explicação da congestão as famílias dividiam-se em duas teorias: numas, o que matava era uma paragem de digestão porque o sangue saía do estômago acudindo ao corpo frio para o aquecer do mar gélido, e ao sair do estômago a comida ficava, parava e, naturalmente, a criança morria. Noutras famílias era parecido, só que ao contrário: o sangue afluía todo, num aluvião torrencial, ao estômago, para proteger a digestão do frio, e deixava órfãos de sangue os rins, o cérebro, o coração, e por aí fora, que paravam, causando a morte imediata do nadador. A congestão podia até dar depois do banho, e morrer-se ali na praia, na toalha, com o homem dos gelados Olá a ver.
Se por algum motivo excecional a digestão fosse encurtada - um almoço mais leve, uma divergência no seio do casal, os pais já não poderem aturar os filhos -, havia que entrar muito devagar na água, sem ser à bruta a correr uma perna para cada lado e a berrar. Por vezes surgiam pequenos jerusaléns, quando famílias com regras diferentes sobre digestão eram obrigadas a conviver debaixo do mesmo toldo, ou a uma toalha de distância. Tudo almoça à mesma hora, mas o Carlos do Chico e da Teresa de Coimbra tem de fazer mais uma hora de digestão. Os estrangeiros, dois toldos para a esquerda, não fazem digestão (as mães dos estrangeiros não se preocupam com os filhos como nós, já se sabe, ou se calhar passam o dia sem comer, elas são pessoas para isso e para muito mais). Pior pior só quando filhos de casais que passam férias juntos cumprem preceitos diferentes. Normalmente acaba tudo por comer pela bitola mais demorada, ó pai mas nós só fazemos uma hora e meia e agora temos de fazer três, diz lá porquê, diz lá, é injusto. Num verão subsequente inicia-se um boicote a esse casal. Tive amigos que faziam três horas de digestão do pequeno-almoço, quatro do almoço, tornaram-se intocáveis.
Na geração que tem filhos em idade balnear, ainda há muita gente que celebra a digestão, mas sem o admitir totalmente, desde logo porque a coisa não é unânime dentro do próprio casal. Libertem-se. Ou legisle-se o fim da digestão. Isso é que era liberalismo. No superior interesse da criança.
DN 20150820
Celebram-se por estes dias sete anos de uma das maiores conquistas civilizacionais da humanidade: a abolição da digestão. Pelo menos lá em casa. Foi libertador. Acabaram-se as três horas e meia de digestão, duzentos e dez minutos de eternidade à espera de nada.
Como se pode ler nas costas de qualquer envelope, o português médio passou um mês na praia entre os seis e os 16 anos. Três horas e meia de digestão, 30 dias, dez anos - mil e cinquenta horas, 43, quase 44 dias inteiros à espera. Não podes ir já para a água. Ou à água. Ou ao banho. Três horas e meia, contadas por relógios de adultos, podem ser mais ou menos do que duzentos e dez minutos. As crianças sabem bem, muito bem, que vale a pena perguntar muitas vezes se já são horas de qualquer coisa, porque quando essa coisa depende de autorização dos pais, a insistência na pergunta encurta a distância até à coisa, ai encurta, encurta. Mesmo com risco de vida.
A congestão era a causa do embargo hidrológico de três horas e meia. Mas a congestão, esse adamastor estomacal, afinal não existe. Era um mito científico, um erro de boca em boca, de família em família, alimentado pela história do Carlinhos que tinha morrido afogado porque não tinha obedecido aos pais e tinha ido nadar depois de comer duas pratadas de arroz de marisco, em Tavira, há cinco anos , ainda por cima com o mar chão, só pode ter sido congestão.
Mas, segundo os médicos, não existe qualquer risco em tomar banho ou nadar depois de comer. Zero. Niente. Nada (à vontade). A imprensa portuguesa continua a noticiar mortes por congestão (por exemplo, no Expresso de dia 16, ainda nem a tinta das letras secou), o que não ajuda a acabar com o mito, e muitas famílias, mesmo as mais jovens, ainda cumprem a digestão. As mortes por afogamento são um problema grave, e até por isso é muito recomendável a preocupação com as suas verdadeiras causas. Se o comer não mata, já o beber não é a mesma coisa, e está provado que muitos dos afogamentos se devem ao consumo excessivo de álcool. Aliás, pode vir do vinho a construção do mito da congestão, por tornar afoitos ao mar aqueles que por não saberem nadar de outra forma não se atreveriam - e como esta aquaticidade movida a vinho vinha depois de uma boa refeição, vai uma nação deitar as culpas no comer, e não no beber, que isso era deitar as culpas em dez milhões de portugueses.
Mas o melhor desta era dominada pelo conhecimento gastrológico estava nas várias nuances da digestão: a digestão não começava logo, se fores já já tomar duche não morres que a digestão só começa 20 minutos depois de acabares de comer (o mesmo para um gelado, logo logo depois de comer). A temperatura da água também não era indiferente, muito fria matava, muito quente matava, mas havia ali um ponto de tépido, fácil de alcançar na banheira, quase impossível na natureza, em que não fazia mal nenhum à digestão porque era à temperatura do corpo. Evitava-se aquele choque térmico que matava. Aliás, quanto à explicação da congestão as famílias dividiam-se em duas teorias: numas, o que matava era uma paragem de digestão porque o sangue saía do estômago acudindo ao corpo frio para o aquecer do mar gélido, e ao sair do estômago a comida ficava, parava e, naturalmente, a criança morria. Noutras famílias era parecido, só que ao contrário: o sangue afluía todo, num aluvião torrencial, ao estômago, para proteger a digestão do frio, e deixava órfãos de sangue os rins, o cérebro, o coração, e por aí fora, que paravam, causando a morte imediata do nadador. A congestão podia até dar depois do banho, e morrer-se ali na praia, na toalha, com o homem dos gelados Olá a ver.
Se por algum motivo excecional a digestão fosse encurtada - um almoço mais leve, uma divergência no seio do casal, os pais já não poderem aturar os filhos -, havia que entrar muito devagar na água, sem ser à bruta a correr uma perna para cada lado e a berrar. Por vezes surgiam pequenos jerusaléns, quando famílias com regras diferentes sobre digestão eram obrigadas a conviver debaixo do mesmo toldo, ou a uma toalha de distância. Tudo almoça à mesma hora, mas o Carlos do Chico e da Teresa de Coimbra tem de fazer mais uma hora de digestão. Os estrangeiros, dois toldos para a esquerda, não fazem digestão (as mães dos estrangeiros não se preocupam com os filhos como nós, já se sabe, ou se calhar passam o dia sem comer, elas são pessoas para isso e para muito mais). Pior pior só quando filhos de casais que passam férias juntos cumprem preceitos diferentes. Normalmente acaba tudo por comer pela bitola mais demorada, ó pai mas nós só fazemos uma hora e meia e agora temos de fazer três, diz lá porquê, diz lá, é injusto. Num verão subsequente inicia-se um boicote a esse casal. Tive amigos que faziam três horas de digestão do pequeno-almoço, quatro do almoço, tornaram-se intocáveis.
Na geração que tem filhos em idade balnear, ainda há muita gente que celebra a digestão, mas sem o admitir totalmente, desde logo porque a coisa não é unânime dentro do próprio casal. Libertem-se. Ou legisle-se o fim da digestão. Isso é que era liberalismo. No superior interesse da criança.
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