Uma bombarda no coração
Manuel Fúria
Cantautor
© SNPC | 10.03.14
Manuel Fúria
Cantautor
© SNPC | 10.03.14
Esta semana nos Colégios da Companhia de Jesus em Portugal (Instituto Nun'Álvres em Santo Tirso, Colégio Apostólico da Imaculada Conceição em Coimbra e São João de Brito em Lisboa) celebra-se a Semana Inaciana, um período de actividades em honra e memória do homem que inventou os Jesuítas, o basco Santo Inácio de Loyola. Eu, que fui aluno do primeiro Colégio citado, sei aquilo que esta semana representa e pareceu-me que, nesta coincidência de datas (do início da Semana Inaciana e do início de uma série de textos para o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura), deveria inaugurar a coisa com um texto em acção de graças pela vida do homem em relação ao qual a minha fé tanto, tanto, tanto deve.
Esta semana nos Colégios da Companhia de Jesus em Portugal (Instituto Nun'Álvres em Santo Tirso, Colégio Apostólico da Imaculada Conceição em Coimbra e São João de Brito em Lisboa) celebra-se a Semana Inaciana, um período de actividades em honra e memória do homem que inventou os Jesuítas, o basco Santo Inácio de Loyola. Eu, que fui aluno do primeiro Colégio citado, sei aquilo que esta semana representa e pareceu-me que, nesta coincidência de datas (do início da Semana Inaciana e do início de uma série de textos para o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura), deveria inaugurar a coisa com um texto em acção de graças pela vida do homem em relação ao qual a minha fé tanto, tanto, tanto deve.
Acção de Graças significa dizer «obrigado», agradecer, e ainda, mantendo este modo pleunástico, mostrar gratidão a Deus. «Contigo sou sempre agradecido» canta a banda Xungaria no Céu numa das suas canções e este parece ser o lema justo para tatuar no braço de um cristão: a infinita e misteriosa bondade que Deus tem por nós, nunca nos largando da mão e actuando segundo Sua infinita sabedoria de um modo que não é alheio à claridade dos nossos olhos vesgos, mas refém dela.
A maravilhosa acção que gostaria de entregar ao Senhor em gratidão, e aquela que mais gostaria de sublinhar, é o momento fundador que transforma para sempre a vida do homem cuja vida e obra, nos próximos dias, é celebrada de modo especial. Aquilo a que sou grato é nada mais nada menos que estilhaços de pólvora, um grave ferimento de guerra, para ser mais preciso, uma «bombarda».
Logo nas primeiras linhas da Autobiografia de Santo Inácio de Loyola podemos ler que «Até aos vinte e seis anos de idade, foi homem dado às vaidades do mundo e deleitava-se sobretudo no exercício de armas, com um grande e vão desejo de honra (...)», creio não ser necessário traduzir para os dias de hoje aquilo que estes atributos significarão. Poder-se-ia substituir «exercício de armas» por «corridas de automóveis», «jogos de futebol» ou outra qualquer actividade mais própria da vaidade masculina, mas aquilo que realmente interessa destas linhas é que este homem, Iñigo López (a versão latinizada "Inácio" surgiria mais tarde após a conversão), era alguém interessado no reconhecimento das coisas terrenas, alheio à verdadeira e eterna glória. Nada de muito original, portanto.
Mais à frente nesta mesma autobiografia podemos ler uma sucinta descrição da célebre Batalha de Pamplona, na qual Iñigo é ferido: «E depois do assalto demorar bom tempo, uma bombarda acertou-lhe numa perna e partiu-a toda e como uma bala passou entre as pernas (...)»; o resto da história já nós sabemos ou deveríamos saber, da sua convalescença e como esse período de fraqueza o mudou para sempre, alterando para sempre também as vidas de cada um daqueles que têm o privilégio de conviver com ele através do lastro que a sua obra deixou e deixa, todos os dias, nas inúmeras obras da Companhia de Jesus. Diz-se também que o guerreiro basco, neste período acamado, imaginava-se conquistando de amores a dama dos seus sonhos e do gozo que isso lhe proporcionava. Um gozo, porém, de curta duração, não comparável a um outro que permanecia incólume a tristezas e outros empecilhos dessa natureza, o de se imaginar fazendo coisas semelhantes às dos santos cujas façanhas tanto o fascinavam (os únicos dois volumes disponíveis para leitura no Castelo onde se encontrava em convalescença eram uma Vida de Jesus e a Legenda Áurea, um compêndio de narrativas hagiográficas muito popular na Idade Média). Foi aí, nesse nervo, que Deus actuou, incisivo e demolidor como a tal bombarda de Pamplona, alterando por Seu amor a vida deste homem e, consequentemente, as vidas de todos de todos aqueles que convivem directamente com o legado dos Jesuítas espalhados pelo mundo, espalhados entre a terra e o Céu.
Obrigado Senhor pela bombarda que estilhaçou o coração de Santo Inácio, obrigado pelas bombardas que todos os dias colocas diante dos nossos olhos vesgos. Obrigado por nos fazeres cair em fraqueza para que retornemos a Ti, exactamente como na narrativa desse filho que não era suposto regressar. Obrigado por nos ofereceres morada, mesmo quando construímos casa nos lugares errados. Que esta divina inspiração do Espírito tome conta dos nossos corações é aquilo que peço, recordando os famosos versículos de Marcos (8,36) que, anos mais tarde, já transformado, guardando essa «bombarda» no coração, Inácio diz a um outro futuro santo, Francisco Xavier: «De que vale a um homem ganhar o mundo inteiro se perder sua alma».
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