Quaresma: "o essencial é viver em Cristo"


Mário Pinto
Pneuma, Março 2014 

1. Do Senhor Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, falando sobre o tema: «A Fé actua pela Caridade», ouvimos recentemente, numa assembleia no auditório das «Irmãs Hospitaleiras», em Idanha-Belas, uma afirmação que nos aponta a questão decisiva para os cristãos: na vida cristã, "o essencial é viver em Cristo".
2. É possível dizer muitas coisas verdadeiras e úteis, a este propósito; mas, no fim de contas, restará sempre que se trata de fazer uma experiência pessoal — a qual cada um faz… ou não faz… e, só se em verdade faz, poderá em verdade  testemunhar.
Graças a Deus, temos muitos ensinamentos e muitos testemunhos, na história da Igreja; mas é justo destacar as palavras que nos deixou S. Paulo, numa das suas cartas: «… eu estou crucificado com Cristo; e já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim. A minha vida presente, na carne, vivo-a na fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim» (Gal 2,19-20).
Nesta inspirada passagem, contém-se não apenas o testemunho pessoal de S. Paulo, mas além disso um precioso ensinamento espiritual e teológico. Para melhor destacar este ensinamento, vale a pena reler as suas palavras, de onde poderemos tirar o seguinte sentido: a minha vida, se for vivida inteiramente na fé em Cristo, implicará o sacrifício da crucifixão de mim próprio, mas receberei como dom a vida de Cristo em mim, pelo Espírito.
3. Estamos em tempo de Quaresma. Faz todo o sentido focar a nossa meditação sobre o mistério da Paixão de Cristo, Paixão que — note-se bem — não só precedeu, mas mereceu a Páscoa da Ressurreição. Assim, viver em Cristo, nesta quadra, ganha um sentido preciso e forte, que é: viver a Paixão de Cristo.
É sabido que tem havido uma tradição, na Igreja, sobretudo em certas épocas e lugares, que exagera a espiritualidade dolorista. Não se trata disso; mas também não se trata de cair no extremo oposto, como se a vida cristã não fosse em absoluto dolorosa. Na vida de Cristo, os mistérios dolorosos estão lá, ao lado dos mistérios gozosos, dos luminosos e dos gloriosos. O mesmo deve estar na nossa vida. Ao longo dos séculos, sempre a autoridade doutrinal e pastoral da Igreja ensinou e testemunhou sobre a necessidade da nossa comunhão na Paixão de Cristo, para entrarmos na comunhão da Ressurreição de Cristo.
4. De um autor ortodoxo muito estudioso da tradição da Igreja, lemos que, «para os cristãos dos três primeiros séculos, da era pré-constantiniana, o martírio representava a mais alta perfeição. Quando acabaram as perseguições, os monges, anacoretas ou cenobitas, apareceram como os sucessores dos mártires, porque reviviam a paixão de Cristo, enquanto obra de amor a Deus e de combate contra Satã e a carne. Num apotegma atribuído a Santo Atanásio de Alexandria, diz-se assim: «Muitos de entre nós dizem: onde estão as perseguições para que possamos morrer mártires? Mas eu digo: sê mártir pelo espírito, morre para o pecado, mortifica os membros terrenos, e tu serás puro no teu espírito e mártir de Cristo». Assim, aquele que se crucifica na luta contra as tentações de toda a espécie, é um fiel imitador da paixão do Senhor» (cfr. Placide Deseille, "L'échelle de Jacob", Aubazine, 1974).
5. À imagem dos mártires, que recebiam o esplendor do Espírito — como a Escritura conta do brilho da face de Santo Estêvão — encontra-se na melhor tradição da milenar espiritualidade dos monges do deserto a seguinte expressão lapidar: «dá o teu sangue e recebe o Espírito» (atribuída ao Abade Longin, nos "Apophtegmas dos Padres do Deserto").
6. Num livro de Nicolau Cabasilas, precisa-mente intitulado «A vida em Cristo», esta doutrina está belamente explanada, e podemos ler a certa altura: «Para nos unirmos a Ele, devemos tomar parte na sua carne e na sua divindade; participar na sua sepultura e na sua ressurreição (Nicolas Cabasillas, La vie en Christ, Cerf, Paris, 1993, p. 86).
7. A economia da salvação é uma comunhão de Deus connosco e nossa com Deus: receber e dar, dar e receber: dar o sangue, para receber o Espírito; receber o Espírito, para dar o sangue. Nunca será demais insistir neste mistério, que é o mistério da igreja, de Deus connosco, no qual temos de entrar pela ascese e pela mística, pela entrega e pelo recebimento, pelo sacrifício e pela oração, que é o programa da Quaresma porque é o programa de toda a vida cristã, o programa que Nossa Senhora de Fátima nos recomendou. Sacrifício que é sobretudo renúncia ao nosso pecado; oração que é sobretudo: [1] louvor e adoração (pela fé); [2] pedido e recebimento (pela esperança); e [3] entrega sacrificial (pelo amor) a Deus e aos homens amados de Deus. Fé, esperança e caridade, as três virtudes teologais que são os três "foguetões" que nos elevam à órbita eterna de Deus.
8. Receber o Corpo e o Sangue de Cristo, e oferecer o nosso sacrifício de louvor e de renúncia, é isto o que também fazemos, na celebração do Mistério da Eucaristia, por expresso mandato do próprio Jesus, na última ceia, qunado da instituição da Eucaristia. Já antes tinha dito, aliás provocando enorme choque incluindo nos discípulos: «O que crê em mim tem a vida eterna. Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente; e o pão que Eu darei é a Minha carne para a salvação do mundo. Em verdade, em verdade vos digo, se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nel(v. discurso em Jo 6, 26 ss). Aqui temos como permanecer em Cristo.
Cristo dá-nos o seu Corpo para nele recebermos o seu Espírito, o qual nos une num só Corpo de Cristo; e, pela comunhão do Cálice, comungamos o seu Sangue, que lava os nossos pecados mas juntando o nosso ao seu Sangue sacrificial — assim completando cada um, em si, o sacrifício de Cristo, como ensinou S. Paulo: «Neste momento, eu encontro alegria nos sofrimentos que sofro por vós, e completo na minha carne o que falta às provações de Cristo, pelo seu Corpo que é a Igreja» (Col 1,24).
Na celebração eucarística, primeiro tomamos o seu Corpo e só depois bebemos o Cálice do seu Sangue — fazemos o percurso inverso do seu, que primeiro bebeu o cálice para depois ressuscitar em corpo glorioso: porque Ele desceu do Céu para que nós subíssemos ao Céu.
9. Paulo Evdokimov, um leigo russo ortodoxo que viveu e escreveu em França (1901-1970) e manteve relações muito amigas e ecuménicas com as grandes figuras do catolicismo francês desse tempo, dedicou um dos seus últimos livros a uma ideia muito interessante: a necessidade de viver, nos nossos tempos, numa nova forma de monacato, a que chama monacato interiori-zado, que recupere a seiva essencial de um vida cristã exigente, à imagem do monacato milenar cristão, unindo: a vida activa e a vida contemplativa; os mandamentos e os conselhos evangélicos; a ascese e a mística (Paul Evdokimov, "La vie spirituelle dans la ville", Cerf, 2008).
10. Permita-se-nos, a este propósito, uma mais longa citação do já citado livro de Deseille, "A escada de Jacob".
«A vida monástica constituiu-se, nas suas estruturas fundamentais, entre o 3º e o 12º séculos. […] A vida monástica apareceu assim como a vida religiosa tal como, sob a conduta do Espírito Santo, a concebeu a Igreja, no tempo dos "Santos Padres da Igreja" [período imediato ao tempo dos Apóstolos]. […] Não tendo sido organizada em vista de uma forma particular de serviço da Igreja, a vida monástica recorda continuamente que a razão primeira de cada instituto religioso é ser um estado de vida onde tudo é disposto em vista de significar e de favorecer, no seu exercício, o que é o próprio coração da Igreja: a vida nova em Cristo, a união íntima e constante quanto possível do cristão ao seu Senhor ressuscitado» [p. 9-10].
O monge é, antes de tudo, um homem que aspira a viver, tanto quanto é possível durante a sua vida no mundo, numa perpétua recordação de Deus. Desde o início das suas Grandes Regras, S. Basílio (século IV), proclama este princípio a seus olhos fundamental: "É preciso sempre levar consigo, por toda a parte, o santo pensamento de Deus, impresso nas nossas almas como um selo inapagável graças a uma recordação pura e contínua.
É por causa disto que o monge renuncia ao matrimónio e aos bens materiais e sociais, e se retira para a solidão, afastando-se da vida profana e das suas ocupações múltiplas, desejando viver no recolhimento e no silêncio. É esta unificação do homem para a procura de Deus sozinho na solidão que significa o nome de monge [p. 10]. Derivado do grego, monos, «só, um», quer dizer simultaneamente solitário e unificado: é monge, ensina S. Teodoro Studita, aquele que se concentra na atenção a Deus e que, só querendo servir a Deus, se torna causa de paz para os outros"» [p. 10]. A Igreja antiga tinha uma concepção muito exigente da vida cristã: para ser salvo no último dia, para ser encontrado desperto quando o Esposo vier, são necessárias atenção e vigilância contínuas. Esta exigência não merece caducar, porque corresponde à exigência perene do Evangelho. Mas deve encontrar novas formas monacais em plena cidade de hoje, como se deseja na procura de uma nova evangelização, que é só de formas de viver a fé, a esperança e a caridade; novas formas de espiritualidade; não de conteúdos.
«Segundo o vocabulário do monaquismo antigo, os termos de vida activa e de vida contemplativa não correspondem a dois estados de vida distintos (representando vocações distintas), caracterizados por fins diferentes: apostolado e obras de misericórdia, por um lado, vida de oração por outro lado. Em vez disso, eles designam duas etapas ou dois aspectos complementares da vida espiritual.
A vida activa define-se pela prática da ascese e pelo exercício das virtudes, especialmente pelo exercício da virtude da caridade fraterna. Esta vida activa implica igualmente as formas «activas» da oração: oração vocal, salmodia [reza dos salmos], meditação.
A vida contemplativa consiste na vida de união profunda com Deus, que é fruto de um dom especial e puramente gratuito do Espírito Santo, dom a que, porém, dispõe normalmente um forte e generoso esforço ascético. Esse dom da vida contemplativa é caracterizado pela facilidade e a espontaneidade no exercício das virtudes evangélicas, e pelas formas de oração que a teologia posteriormente qualificou como "infusas" ou "místicas".
Nesta perspectiva, a vida monacal, ou monástica, considerada na sua plenitude, é simultaneamente activa e contemplativa (p. 11).
Por outro lado, os monges dos primeiros séculos não parece terem pensado que a sua vocação excluísse a priori toda a actividade apostólica. Pelo contrário, constatamos que, a este respeito, subsistiu sempre uma grande liberdade , quer no Oriente que no Ocidente; e que se prolongou no Ocidente pelo menos até à época carolíngia. (p. 12) Sempre se avisou os monges insuficientemente formados contra as aspirações desta natureza, que têm o risco de de não serem para eles senão ilusões: uma alma não pacificada não poderia pacificar os outros e arriscaria comprometer a sua própria salvação assumindo uma tarefa para a qual não foi chamado por Deus (p. 12).
Disse o Abade Ammonas: "os nossos santos padres… começaram por, vivendo numa grande solidão, obter que a virtude divina habitasse neles; foi só depois disso que Deus os enviou ao meio dos homens, quando já possuíam as virtudes para servir a edificação dos homens e para curar a sua fraqueza, porque eles eram os médicos da alma e podiam curar as suas fraquezas… Foi para não desobedecer aos seu Criador que saíram da sua solidão para a edificação dos homens"» (p. 12) [sublinhados nossos]
11. Sempre lembrando advertências do Divino Mestre e o ensinamento milenar dos Padres, o que a Igreja nos propõe como pilares essenciais da vida cristã, e Nossa Senhora de Fátima recomendou, pode-se dizer em duas ou três palavras, se bem entendidas e bem cumpridas: penitência e oração. Mais especificadamente, para a Quaresma: jejum, oração, partilha.
12. Vigiai e orai, para não cairdes em tentação (Mt 26, 41). Sede vigilantes, tende os vossos cintos apertados e as vossas lâmpadas acesas, como aqueles que esperam o seu Senhor para o banquete das núpcias (Lc 12,35). Sede vigilantes, porque não sabeis quando chegará a vossa hora (Mc 13,33). Ninguém pode servir a dois senhores (Mat 6,24). 

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