Adolfo Suárez

PAULO RANGEL Público, 25/03/2014 - 02:32
Morreu um dos meus ídolos políticos. Um político que devolveu a Espanha à Europa e ao mundo, um político europeu e europeísta.

1. Cheguei à política tarde, folgadamente tarde, mas o meu interesse pela política começou cedo, inusitadamente cedo. Muito marcado pelo modo como a família viveu, foi compelida a viver e – de resto, com todo um entorno de amigos e de relações – quis viver o período revolucionário.
Essa rede de relações começou por se "politizar", ainda antes do "marcelismo", à volta do associativismo católico (onde, nos meios do Porto, pontificava Sá Carneiro) e, a partir dos anos iniciais da década de 70, em redor do fenómeno pouco estudado das "associações de pais" de escolas, liceus e colégios. Antes mesmo da Revolução, mas também durante e depois dela, essa nuvem de relações vivia muito a Espanha e de idas a Espanha. Eram quase mensais as idas para compras a Vigo e a Tui e, bem mais espaçadas, as incursões de lazer e turismo a Pontevedra, La Toja, Santiago e La Coruña. Lembro-me bem da Vigo antes do El Corte Inglès – a Vigo do El Pilar e dos Preciados –, da Vigo posterior das polémicas da Scalatrix ou do primeiro dos hipermercados, o Alcampo. Recordo-me da enorme contestação a Franco, algures pelo Verão de 1975, pela condenação à morte de presos políticos ou de terroristas da ETA – já não sei bem… E do clamor que isso provocou no Portugal do PREC, enchendo muros de tinta e de palavras de ordem. A atenção a Espanha passou também a ser política – intensamente política – a partir da morte de Franco. A velocidade, a agitação e a expectativa com que se vivia o quotidiano revolucionário comunicaram-se a Espanha e, embora com ritmos distintos, passamos a seguir com paixão e partido a política espanhola. 
2. Não é, por isso, estranho que a grande referência política da minha infância e adolescência, a seguir a Sá Carneiro, tenha sido (e seja ainda) Adolfo Suárez. Suárez era da mesma geração – um nasceu em 1932 e outro em 1934 – e partilhava com ele as raízes católicas, o talento oratório, a capacidade de sedução, o carisma político e pessoal. É certo que Sá Carneiro revelou bem cedo a intransigência com o conformismo e a acomodação e até a apetência pela ruptura e pela clarificação. Já Suárez fez sempre o seu caminho dentro dos trilhos do franquismo e no quadro do Movimiento Nacional, correndo por dentro do regime. Mas hoje é bem sabido que, desde os tempos do Governo Civil de Segóvia, pertencia ao restrito círculo de "conspiração" que reunia sob a égide do então príncipe Juan Carlos. É sabido, também que, enquanto director-geral da televisão espanhola entre 1969 e 1973, o seu principal móbil foi projectar positivamente a imagem do futuro Rei. E apesar da surpresa geral aquando da sua escolha, em Junho de 1976, para pilotar o processo de transição, essa escolha estava em linha com a profunda cumplicidade com o Rei de Espanha e com um conjunto de sinais que havia dado no exercício de funções governativas. É lendária a intervenção nas Cortes em defesa da nova lei de associações políticas, pouco tempo antes da sua indicação para Presidente do Governo, intervenção que termina com uma citação de versos de António Machado, um dos poetas exilados pelo regime.
3. Será porventura redundante encarecer a habilidade e a determinação com que, ao longo de mais de um ano, desmantelou, um por um, os pilares do franquismo e criou as condições para fazer eleições livres e para adoptar uma Constituição. O modo inteligente e sagaz com que lidou com os militares, o modo como integrou o Partido Comunista (e também como este se deixou integrar) e o modo como procurou resolver a equação territorial revelaram um talento político excepcional. Tudo isto foi conseguido num país que vivia assombrado pelo fantasma da guerra civil e que continuava sequestrado pelo pesadelo do terrorismo basco.
Merece ainda menção – e não das menores – a construção do seu partido político: a UCD, a União do Centro Democrático. Os meses que se seguiram à morte de Franco deram origem à criação de dezenas de partidos políticos na área moderada que vai do centro-direita ao centro-esquerda, no espaço que se situava entre o PSOE de González e Tierno Galván e a Alianza Popular de Fraga Iribarne. Aí apareciam claramente três famílias ideológicas, uma mais democrata-cristã, outra mais liberal e outra mais social-democrata. Estas formações eram pautadas pelo protagonismo pessoal dos seus líderes, uns vindos da oposição, outros provenientes, com mais ou menos envolvimento, do regime anterior. Adolfo Suárez, com o seu carisma e o seu talento reconciliador, logrou federá-los debaixo de uma mesma bandeira, a UCD. A génese formal da UCD – que haveria de ditar a sua desintegração nos idos de 1981-82 – nada tem que ver com o PSD. Mas a UCD, pela sua composição sociológica, pelo seu espectro ideológico, pela sua genuinidade nacional (sem paralelo europeu), pela sua turbulência interna e pela liderança carismática foi o único partido europeu que, em alguns traços essenciais, fazia lembrar o PSD.
4. O Presidente Suárez, tal como Sá Carneiro, não tinha resiliência para a guerra civil partidária. E no final de Janeiro de 1981demitiu-se, desgastado pelo agravamento da situação económica, pelo assomo do terrorismo da ETA e do GRAPO, pela pressão dos militares nostálgicos da ditadura, pelo radicalismo da oposição do PSOE, pelas lutas intestinas da UCD e por um certo esmorecimento do apoio do Rei (que era pessoalmente estruturante). Estava ainda em funções de gestão, quando eclode o 23 de Fevereiro e enfrenta de pé, no hemiciclo, os golpistas. É também lendária a conversa, tardiamente revelada, que exige ter e acaba por ter com Tejero Molina em plenas Cortes.
Morreu um dos meus ídolos políticos. Um político que devolveu a Espanha à Europa e ao mundo, um político europeu e europeísta. Aquele que respondeu a todos os que, viciados na negativa, por aí dizem que "não prometem o que não podem cumprir". Ele respondeu-lhes e disse, simplesmente disse: "Posso prometer e prometo".

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