Direito à liberdade de educação?
FERNANDO ADÃO DA FONSECA Público, 29/03/2014
A prova dos nove de qualquer sistema de ensino reside na resposta que dá a uma criança de uma família com poucos ou nenhuns recursos económicos e culturais.
O direito à liberdade de educação pertence ao património cultural e político de todos os que são a favor da liberdade. Diz o artigo 26.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem:
"Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos."
Diz o n.º 3 do artigo 14.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia:
"São respeitados (...) o direito dos pais de assegurarem a educação e o ensino dos filhos de acordo com as suas convicções religiosas, filosóficas e pedagógicas."
Diz o artigo 43.º da Constituição da República Portuguesa:
"É garantida a liberdade de aprender e ensinar."
"O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas."
"O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas."
Mas pergunta-se: basta dar liberdade de escolha da escola para que essa liberdade passe a ser efectiva?
A reflexão sobre as experiências em diversos países com maior ou menor liberdade de escolha da escola, algumas desde o início do século XX, tem demonstrado ser essencial distinguir entre as escolas que asseguram o chamado "Serviço Público de Educação" – que é aberto a todos os cidadãos – e as escolas que, não obstante a valia do seu contributo para a sociedade, não desejam estar obrigadas aos requisitos do Serviço Público de Educação, que especificaremos abaixo. Nesta distinção, não há lugar para a discriminação com base na personalidade jurídica do proprietário da escola, concretamente se é estatal ou privada, uma característica que não entra na definição de qualidade do ensino ministrado.
A prova dos nove de qualquer sistema de ensino reside na resposta que dá a uma criança de uma família com poucos ou nenhuns recursos económicos e culturais. Foquemo-nos, portanto, sobre ela. Chamemos-lhe João. Vejamos então:
1. Os pais do João têm de ter liberdade de escolha da escola, sob pena de as normas universais, europeias e da Constituição Portuguesa serem violadas.
Ora, para que o João e a sua família tenham escolha, têm de existir alternativas, entre as quais a escolha que possa ser feita. Por isso, o exercício efectivo da liberdade de escolha exige a total liberdade de criação de novas escolas, que, obviamente, concorrerão entre si. É uma primeira exigência do Serviço Público de Educação.
Na ânsia de descobrir razões contra a liberdade de escolha da escola, muitos agarram-se ao argumento de que a concorrência só pode ser uma realidade quando existem diversas escolas razoavelmente próximas da residência do João. Esquecem todo o conhecimento da ciência económica de que basta existir a chamada "concorrência potencial" para que o efeito da concorrência se faça sentir plenamente. Uma escola numa zona em que não exista qualquer outra escola deverá estar sujeita à possibilidade de outra escola ser criada e ser escolhida pelos alunos e suas famílias.
2. Acontece que, para que a escolha do João e da sua família tenha sentido, é preciso que as escolas possam responder ao que os seus pais e professores considerarem ser melhor para o João (uma criança em concreto e irrepetível e não um aluno "imaginado" concebido nos gabinetes de uns tantos que se consideram iluminados) e, portanto, diferenciar-se entre si. Isso implica que, para além das orientações básicas e consensuais da educação obrigatória, as escolas terão de usufruir de uma clara e definitiva flexibilidade e autonomia curricular, pedagógica, administrativa e financeira, incluindo de selecção do corpo docente, com a correspondente responsabilização de todos os intervenientes no processo educativo, implicando o seu fecho se a escola não tiver suficientes alunos que a escolham ou não satisfizer as exigências de qualidade. É uma segunda exigência do Serviço Público de Educação.
3. Mas, para que a escolha de uma escola pelo João e pela sua família seja possível, é preciso que as escolas que prestam o Serviço Público de Educação não possam cobrar quaisquer propinas para além do financiamento que é garantido pela sociedade, através do Estado. É uma terceira exigência do Serviço Público de Educação.
4. Mas o João tem a garantia de entrada na escola que quer? Uma condição evidente é que as escolas que prestam o Serviço Público de Educação não podem seleccionar os alunos. É uma quarta exigência do Serviço Público de Educação.
5. Todavia, nenhuma escola tem vagas ilimitadas. Por isso, têm de existir critérios de atribuição das vagas existentes. Quais? Para além dos habituais critérios dos irmãos e outros já consensualmente aceites e previstos na lei, as escolas terão de recorrer obrigatoriamente a um sorteio entre as candidaturas quando a procura exceder a oferta. É uma quinta exigência do Serviço Público de Educação.
6. Também será necessário garantir que nem o João nem nenhuma outra criança ficará sem acesso a uma escola. Por isso, as escolas de uma determinada vizinhança terão de assegurar solidariamente o direito à educação de todos os alunos dessa vizinhança, de acordo com certas prioridades bem definidas. É uma sexta exigência do Serviço Público de Educação.
7. Acontece que o João e a sua família também possuem grandes carências culturais e precisam que exista informação clara e útil sobre as características de cada escola, em todas as dimensões que possam ser relevantes para a compreensão de quais as escolas que melhor respondem ao "direito dos pais de assegurarem a educação e o ensino dos filhos de acordo com as suas convicções religiosas, filosóficas e pedagógicas" (n.º 3 do artigo 14.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia). Por isso, é absolutamente necessária a produção de informação idónea e exaustiva sobre as escolas, o seu projecto educativo, o seu funcionamento e os seus resultados, bem como a criação obrigatória de gabinetes locais informativos e de aconselhamento aos alunos e às famílias. É uma sétima exigência do Serviço Público de Educação.
8. Finalmente, é necessário assegurar o cumprimento de todas estas exigências. É uma função que compete ao Estado. Precisamos de um Estado forte que defina os aspectos fundamentais da componente do currículo obrigatório, avalie o cumprimento das metas de excelência do ensino, apoiando os professores e as escolas que apresentem dificuldades, e inspeccione o cumprimento estrito das exigências do Serviço Público de Educação, penalizando exemplarmente quem as não cumpre. É uma oitava exigência do Serviço Público de Educação.
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