"Entre-tanto", «um dos mais belos livros de teologia que se escreveram em Portugal»
SNPC 11.03.2014
A Paulinas Editora lança esta segunda-feira nas livrarias o mais recente livro do padre José Frazão Correia, recentemente eleito superior da Companhia de Jesus em Portugal, intitulado "Entre-tanto - A difícil bênção da vida e da fé".
A teologia do religioso jesuíta mostra que cada pessoa «é uma biografia do paraíso» ao tomar «a vida como ela é, como cartografia para o sobressalto da graça», aponta o padre José Tolentino Mendonça na introdução.
Para o diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, José Frazão revisita «esperançadamente» a «travessia de silêncios» que é a existência humana, feita de «enigmas e lavas» numa «habitação convulsa, ao mesmo tempo precária e sublime».
«Este é um dos mais belos livros de teologia que se escreveram em Portugal nos últimos anos», considera o poeta e biblista.
José Frazão Correia nasceu em 1970 em Alqueidão da Serra, tendo entrado na Companhia de Jesus 25 anos depois. Foi ordenado padre em 2004, tendo estudado em Lisboa, Braga, Roma e Paris.
Doutorou-se em Teologia Fundamental, na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e em 2013 publicou, também nas Paulinas, a obra "A fé vive de afeto" (cf. Artigos relacionados).
Entre-tanto
José Frazão Correia
Excertos
José Frazão Correia
Excertos
«No centro está a fronteira, lugar de passos e de passagens, de perdas e de paixão. Se nos custa reconhecer como a fé se tornou irrelevante para tantos e como, por vezes, faltam às comunidades cristãs a força dos gestos e a unção das palavras que sejam capazes de dar um corpo vivo à graça do Evangelho, poderemos chegar a receber esta experiência de prova como bênção de um tempo favorável. A pobreza do momento instaurará coisas novas. O custo do caminho revelará a surpresa d'O sempre presente. Talvez de outros modos, apontando noutras direções. A fronteira que nos tirou do centro poderá ser o lugar que nos convém como casa, a nós, discípulos de Jesus que não teve lugar onde reclinar a cabeça. E, porém, amou todo o mundo como sua casa e todos os homens como seus irmãos.»
«Nos lugares e nos ritmos mais elementares da nossa existência, poderemos realizar a abundância do dom de Deus que nos é dado pela fé em Jesus Cristo. Talvez a nossa salvação passe, em grande parte, pelas coisas pequenas e pelos encontros habituais de cada dia. Aí poderemos chegar a ser filhos, avançando de um nascimento a um outro nascimento, desejando a estatura de Cristo, os sentimentos do seu coração, o estilo da sua vida.»
«Se Deus fosse mera explicação para o que ainda não sabemos, mereceria o melhor de nós mesmos? Se não fosse mais que o resultado argumentativo da nossa inteligência ou que a magia de um momento gratificante ou que o fugaz arrepio da alma, mereceria que lhe entregássemos todo o nosso afeto? Se fosse a resposta predefinida para todos os problemas, o tapa-buracos da nossa incompreensão dos mistérios do universo e da existência, mesmo que animando a mente, poderia reconfortar a vida? E se fosse uma espécie de mãe galinha que abafa as suas crias, não lhes deixando espaço para o respiro e o crescimento, poderíamos sentir-nos livres na sua presença e confiar na gratuidade dos seus dons? Se fosse omnipotente como são os reis poderosos ou prepotente como são os pais tiranos, não nos levaria a fugir à primeira oportunidade? Se Deus não estivesse nos inícios como bênção e se não acompanhasse o caminho real dos homens e mulheres que existem, através dos abismos e das fraturas da sua humanidade, e se não abrisse a possibilidade de uma esperança que reconforte o coração, depois de uma difícil e longa jornada, como poderíamos confiar nele e como poderíamos confiar-nos a Ele?»
«Outra coisa é se Deus for dádiva de si e que, por isso, cria o mundo e o aprecia na sua diferença e gera a vida na vida de cada um, também na vida daqueles que o olham com indiferença e, até, com inimizade, e a aprecia ainda mais; se for ternura que deseja a alegria e que abençoa a inventividade humana; se for descrição da liberdade que dá tempo ao tempo de cada um, que dá a palavra para que cada um chegue a dizer-se e as capacidades para que venha a ser o que pode ser; se for afeto que sacia o desejo mais íntimo de relações justas e que gera um laço ajustado de mútuo reconhecimento… Se for assim, então, Deus acabará por encontrar lugar no melhor de nós mesmos e o desejo de vida que há em nós chegará a reconhecer-se salva-guardado nele e por Ele.»
«Pelo amor e no amor aprendemos a ver mais e melhor, como quem entre-vê o sentido por entre linhas curvas; a tocar justamente cada coisa, acontecimento e pessoa, como quem é tocado por um dom surpreendente e sempre mais do que necessário; a escutar como quem pressente a promessa de cada palavra no timbre e na modulação justa dos sons que a anunciam, e, claro, em cada silêncio; a apreciar melhor e em cada parcela da realidade o gosto e o perfume da bênção que as coisas, os acontecimentos e as pessoas são. Como a amada e o amado do Cântico dos Cânticos que reentram no Jardim do Éden, não pela nostalgia das origens perdidas, mas pela vitória do amor sobre o egoísmo, da graça sobre o pecado, da confiança sobre o medo, do desejo ordenado em Deus sobre o desejo desordenado pelo próprio amor, querer e interesse. O amor recebido e retribuído permite reencontrar a dimensão corpórea e relacional da nossa humanidade, com os seus ritmos quotidianos e os seus lugares comuns, onde se dá, de facto, a experiência de Deus. E permite reencontrar o mundo como casa onde sentimos ser de casa e nos sentimos em casa, o espaço acolhedor e hospitaleiro, onde a posse cede, de novo, o lugar ao dom e o furto ao fruto. Assim pode amar-se Deus em todas as coisas e amar todas as coisas em Deus. A história pode recomeçar, agora, com coisas novas e ainda mais belas do que aquelas criadas no início. Porque o amor é sempre novo e faz novas todas as coisas e não fica indiferente a quem dele se separa.»
«Não é possível que de Deus venha, indistintamente, o bem e o mal, a bênção e a maldição, a promessa e o abandono. Não é possível que aquele que cria seja o mesmo que destrói, apenas porque poderá querer que seja assim, como um qualquer rei absoluto indisposto ou uma qualquer criança caprichosa. Como poderia aquele que gera e que dá à luz ser o mesmo que traz à vida como quem expulsa? Como se poderia esperar benevolência daquele que pode atingir sem motivo e que precisa do sofrimento humano para restabelecer o seu próprio ordenamento das coisas? Um Deus assim que Deus seria? E que humanos seríamos nós se suportássemos resignadamente um Deus assim?»
«Nenhuma questão é tão vital – literalmente, é questão de vida e de morte – quanto a certeza acerca da possibilidade de uma justa relação com a verdade-justiça de Deus, a Origem (abertura promissora) e o Destino (realização surpreendente) da existência humana, biograficamente vivida. Deus é digno de confiança, a quem, por isso, é possível confiar-se. Citando o poeta N. Júdice, "assim, a vida poderá ter valido a pena. É isto que fica: o que nos foi dado e o que damos, sem que nada nos obrigasse a dar e a receber; o puro gesto do acaso, na mais absoluta das obrigações" (2001, pp. 65-66).»
«Em tempos de fluidez e de trânsito permanente, o ato de fé e as práticas crentes deixaram de contar com o reconhecimento cultural e a proteção social de um centro incontestado, bem delimitado e seguro. Perante a indiferença de muitos e a hostilidade de alguns, tornámo-nos pobres, não tanto de coisas, mas de relevância, de lugares e de identidade. Perdido o centro que definia e geria tudo a partir de cima e de dentro, o Cristianismo parece atravessar, hoje, a dor da perda e da insegurança. Como tantos outros no passado, vê-se, a si próprio, na margem, excluído, inseguro. Os papéis inverteram-se.»
«Será, este, um mal contra o qual resistir heroicamente, perante a suposta inevitabilidade do abismo? Será, pelo contrário, motivo suficiente para a resignação desconsolada e lamuriosa de quem, no fundo, deixou de crer que o Evangelho possa ser reconhecido e acolhido, ainda hoje, como boa notícia que faz viver e da qual se pode viver bem, sem deixarmos de ser homens e mulheres do nosso tempo? Este poderá ser o momento fecundo de uma noite escura, difícil, mas necessária para algo mais autêntico (João da Cruz).»
«Tal como no princípio – é bom não o esquecermos – a morte é o caminho para a vida e a perda o lugar do encontro. Poderemos redescobrir que morrer para o poder e para o conforto do centro para viver o trânsito inseguro das periferias, afinal, não será perda, mas reapropriação da força do Evangelho; não será solidão, mas comunhão com os últimos e os pequeninos, aqueles de quem é o Reino dos Céus; não será ausência de Deus, mas reencontro com o Mistério que resiste a toda a ideologia e idolatria. O otimismo triunfante, por vezes forçado, de muitos dos nossos discursos e realizações nunca resolveu completamente esse sentimento íntimo de uma ausência e obscuridade que tememos confessar, mas que é próprio da fé em Jesus de Nazaré.»
«Quanto poderemos aprender com esta forma de Jesus se fazer presente nos longos e difíceis caminhos das nossas ilusões e descrenças, desejos e frustrações, para chegar a comungar, de facto, e não somente em boas intenções, a vida dos nossos contemporâneos, os movimentos das suas existências. E quanto poderemos recolher deste modo de proceder de Jesus ressuscitado que abre os olhos dos seus discípulos ao reconhecimento da sua presença, exatamente no momento em que deixam de o ver. A ausência acena a uma outra forma de presença, que já os precede na Galileia da ambiguidade e da ambivalência da vida de todos os dias. Aí se cruzam fé e descrença, verdade e desconfiança, justiça e maldade. É preciso que o Senhor vá para que desça o seu Espírito. Não é esse o tipo de relação que vivemos em cada Eucaristia, comungando daquele Pão que não parece pão, que é Corpo que não se vê? Deste modo se poderá favorecer um espaço de possibilidade para o encontro biográfico com o Senhor Jesus. Será a arte de tocar sem aprisionar; de se dar, sabendo retirar-se; de dizer sem ofender o mistério e cobrir o silêncio que nos envolve a nós e a eles; de se fazer alimento sem criar dependências; de brilhar como luz que se extingue.»
«A fé na Palavra que salva não pode renunciar a contestar profeticamente o espírito do mundo, com as suas fixações ideológicas e idolátricas, as suas veleidades inconsistentes de autoglorificação, as suas forças negativas e destrutivas, as muitas desordens e injustiças apregoadas como ordem e desenvolvimento, os males oferecidos sob aparência de bem e os horrores das suas injustiças. Porém, hoje e mais do que nunca, com um sentido forte do sagrado, unido, inseparavelmente, a um envolvimento ativo no mundo, cabe-lhe, não menos, a sabedoria dos gestos e das palavras que saibam abençoar e elevar os ritmos e os lugares elementares da existência humana, quotidiana e biográfica. Ainda que na sua corrupção, esses lugares permanecem o Corpo ferido e glorioso do Verbo encarnado – a carne viva onde o Verbo ressoa, o Gesto no qual somos tocados.»
«A consciência da mudança que a modernidade ocidental trouxe consigo, deslocando o Cristianismo do centro para a periferia dos dispensáveis e dos irrelevantes, além de favorecer a sabedoria de atenção e a arte da descrição,apresenta-se, também, como ambiente ideal para repensar teologicamente o lugar da fronteira, fazendo-nos concluir, talvez, que, afinal e desde sempre, o mais originário da fé no Verbo feito homem é de habitar não a estabilidade e a proteção do centro bem definido e estável, mas a fragilidade e a instabilidade das múltiplas periferias humanas. E, por ser assim, as práticas crentes não deixarão de ser moldadas por uma existência individual e comunitária de discernimento, vivida em fronteira, como quem assume a errância do êxodo como o seu próprio domicílio.»
«O Verbo, realmente, fez-se carne. Porque o Puro não tem medo de sujar as mãos no impuro, nem o Santo de se expor à miséria humana. E onde está o Mestre lá deverá estar o seu servo. Onde estiver a cabeça lá deverão estar os membros.»
«O Filho faz-se estilo de vida, filial e fraterno, grato e dedicado, próximo e desprendido, que podemos apreciar e perscrutar a partir da vida concreta que recebemos e que realizamos, da biografia que já escrevemos, dos sonhos que ainda alimentamos. Nos dias da sua vida entre nós, toca quando é tocado, repara quando é observado, escuta quando é escutado, interroga quando é interrogado. Dá-se quando é oferecido. E, assim, diz-se, enquanto cria espaço, não imediatamente para o que se sabe sobre Deus ou sobre a lei, nem para o que se deveria ser ou para aquilo que seria bom que se fosse, mas para as marcas reais que a vida assinala na carne e na alma biográficas daqueles que encontra – a lepra, a cegueira, o adultério, a prostituição, a rejeição, a pequena estatura, a paralisia, o luto. É assim com a samaritana no poço e com Zaqueu na árvore. E com a mulher pecadora, em casa de Simão. E com o homem rico, tão observante. E com a mulher adúltera, na praça, e os homens que sustentam as pedras para lhas atirar. O seu modo de proceder força a conversão do modo real de olhar e de se olhar, de interpretar e de se interpretar, até que novas palavras e outros gestos desenhem e realizem o estilo de um corpo vivo, cheio de graça, como verdadeiro modo de vida que tenha a força e a forma de uma vida justa.»
«Sendo outra coisa em relação à banalidade do quotidiano – quantas palavras vazias e gestos insignificantes, quanta vida não recebida e não dada, quanta admiração não cantada e quanto bem não realizado – a ação litúrgica é, também, lugar de emoção e de fineza da sensibilidade. Envolvidos, todos os sentidos fazem-se lugar eficaz de abertura e de reconhecimento. O olho é levado a ver, vendo-se visto. O ouvido a ouvir, sentindo-se ouvido. Com o tato toca-se o mistério, sendo-se tocados. Talvez feridos. Com o cheiro e o gosto, o mistério é apreciado como sabendo a vida. No espaço dos sentidos implicados e transfigurados na ação litúrgica as coisas mais simples da realidade fazem-se extraordinariamente eloquentes e os detalhes, mesmo aqueles inobservados, carregam uma inesperada fecundidade. A vida humana elementar faz-se habitação do mistério divino – o mesmo mistério que se torna presente na comunidade, para nós, em corpo e sangue.»
«Em Jesus, a santidade divina assume a forma da autenticidade. Por isso, a coerência entre forma e conteúdo, isto é, entre palavras e gestos, entre o que se faz e o que se diz, entre o que se pede e o que se dá, entre o modo como se toca e como se se deixa tocar, como se acolhe e se se retira, serão a forma e a força da realização da presença salvífica de Deus. Será a fiabilidade do estilo do corpo eclesial – da polifonia das vozes, da pluralidade dos estilos – a despertar, ainda hoje, a confiança na vida e a favorecer, pela fé em Jesus, a adesão confiada àquele que lhe está na origem, acompanha o crescimento e espera a feliz realização. Por isso, a prática e o pensamento cristãos da vivibilidade da fé não poderão ficar alheios à visibilidade das formas eclesiais do ato de crer.»
«O desapego de si e a capacidade de aprender com aqueles que encontra dão uma fisionomia particular do modo de Jesus habitar o mundo. Mas este modo de viver a partir de um outro (do Pai) e para os outros (os irmãos) não revelará fraqueza? Sim. É fraqueza, desprendimento, apagamento. E, porém, é a marca da sua autoridade de Filho que não se manifesta como astúcia sedutora nem como imposição irresistível. Sendo capaz de ceder o lugar para que cada um, a partir da sua vida, possa aceder ao que lhe é mais elementar e vital, Jesus revela a sua autenticidade e autoridade. Esta é a ausência de falsidade. O poder de Jesus é o seu não querer poder.»
«Quem teme, evita. Desconfia. Protege-se. Distrai-se. Finge, desejando que, no fundo, o encontro nunca venha a acontecer. Quem ama, porém, tudo fará por chegar antes, antecipando, de todos os modos, a graça desse momento. Enquanto se prepara, já vive o encontro que, ardentemente, deseja. Mesmo que ainda não veja, já entrevê. Ainda não ouve, mas já pressente. Ainda não toca, mas já é tocado. Alegre, já aprecia o perfume e saboreia o gosto. Porque «é isto o amor: ver-te mesmo quando te não vejo». Estando aí o seu tesouro, estará, aí, todo o seu coração. E o coração de quem ama é muito desprendido e dedicado, criativo e justo. Aquele que vive no amor, mesmo tendo poucas coisas, vive na abundância. Amado, é livre. Por isso, não teme. E, não temendo, não precisa de acumular coisas, nem de fingir ser o que não é, nem de recear o amanhã. Não se incha, querendo ser o que não é. Não se diminui, deixando de ser o que é. Esvaziado de «coisas incertas», vive de graça. Na verdade, vive a graça.»
«Não viver distraído nem disperso, mas atento ao dom de cada momento e à promessa quotidiana da existência; não acumular para si, mas partilhar com quem tem menos; não construir para si próprio, mas participar na construção do Reino serão alguns dos gestos que realizam o amor que tem no Senhor o seu tesouro. Quem assim vive, é em Deus que vive, vivendo para a vida de outros. Nos lugares onde habita já reconhece aquilo que não passará. No tempo, já saboreia o gozo da eternidade. Agradecido e livre, esperando que não tarde, declarará ao Senhor, aqui e agora, entre-tantas-coisas-e-tantas-pessoas, em quem pensar, senão em Ti? Neste laço de afeto, atravessando dúvidas e medos, saberá dar um corpo vivo ao dom mais originário – difícil, a vida é bênção.»
In Entre-tanto, ed. Paulinas
11.03.14
11.03.14
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