Esta economia mata
João César das Neves DN 2014.03.17
O Papa Francisco, neste seu primeiro ano de pontificado, foi fascinante e polémico. Quase tanto quanto o seu Senhor Jesus. Um dos muitos choques resultou das posições económicas da Exortação Apostólica Evangelli Gaudium de 24 de Novembro. Vários grupos exultaram com o que consideraram bênção papal às suas críticas do sistema, enquanto entidades económicas mostravam consternação ou repúdio. O Wall Street Journal (26/Nov/2013) acusou-o de, "usando linguagem invulgarmente severa, criticar asperamente a economia de mercado". Para entender o Papa é preciso lê-lo e meditá-lo, o que poucos fizeram.
O próprio texto afirma não pretender mudar a doutrina: "Este não é um documento social e, para nos ajudar a reflectir sobre estes vários temas, temos um instrumento muito apropriado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, cujo uso e estudo vivamente recomendo" (184). Aliás, com característica delicadeza, chega a antecipar melindres: "Se alguém se sentir ofendido com as minhas palavras, saiba que as exprimo com estima e com a melhor das intenções, longe de qualquer interesse pessoal ou ideologia política" (208). O Papa não faz ideologia política, ao contrário da maioria dos comentadores, apoiantes ou críticos. O que pretende em cada página é anunciar a alegria do Evangelho.
A Exortação tem frases inegavelmente contundentes: "Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras" (56). "O sistema social e económico é injusto na sua raiz (...) É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor" (59). "Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado" (204). Estas posições não são novidade, nem no conteúdo nem na forma. Lembra-se do camelo e da agulha? A expressão "estruturas de pecado" é de João Paulo II (Sollicitudo Rei Socialis, 1987, n.º 36) e Bento XVI na encíclica Caritas in Veritate de 2009 afirma: "Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades(...) Continua o escândalo de desproporções revoltantes" (22). A última frase, citada da encíclica de Paulo VI Populorum Progressio em 1967 (n.º 9), mostra como é antiga atitude que tanto surpreendeu.
Francisco acusa a economia de matar, e explica o significado: "Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída" (53). Todos sabemos como isto é verdade. A reacção é que varia. Muitos dos que aplaudem instrumentalizam as críticas papais em programas políticos que agravariam a situação. Outros, abespinhados pelas queixas, acusam o Papa de comunista. Ambos fazem usos ideológicos da Exortação, que surgem sempre que ela serve para atacar, sem implicar exame da própria consciência. Isso involuntariamente aumenta os males denunciados por Francisco.
O Papa não se limita a criticar; ele tem uma poderosa solução. Apresenta até quatro "princípios" doutrinais originais (221): o tempo é superior ao espaço (222-225), a unidade prevalece sobre o conflito (226-230), a realidade é mais importante do que a ideia (231-233), o todo é superior à parte (234-237). A resposta para os horrores que denuncia é clara: "A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria" (1). Os que, concordando com as censuras, põem a sua fé em instrumentos alheios, realmente promovem o que dizem repudiar.
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