Lealdade



José Maria C. S. André
«Correio dos Açores», 30-III-2014                                                   

A um mês da canonização de João XXIII e João Paulo II, é normal querer saber os pormenores mais pessoais. Se não tivesse sido pelos processos de canonização, algumas histórias nunca se saberiam.
É impossível ler essa documentação sem ficar comovido. Realmente, estes Papas foram grandes santos, de uma humildade e de uma rectidão impressionantes.
Nos processos não encontramos só momentos heróicos protagonizados por eles, descobrimos também, lateralmente, a companhia silenciosa ‒ de uma lealdade compacta ‒ de muitas outras pessoas. Dou um exemplo.
De vez em quando, João Paulo II escapava incógnito do Vaticano para um passeio rápido pelo monte. Não conseguia fazer estas pausas com frequência mas, como o pontificado durou mais de 26 anos, no total foram várias dezenas de saídas.
Vale a pena abrir aqui um parêntese, para se perceber como é que um Papa sai clandestinamente do Vaticano. Primeiro, com antecedência, a Santa Sé comunica o plano ao Estado italiano. Depois, no próprio dia, alguns carros da polícia italiana vão fazer uma vistoria aos locais, umas horas antes de o Papa chegar. Finalmente, sai o carro em que vai o Papa, o secretário e alguns convidados, acompanhado por um carro da polícia italiana e outro de guardas suíços.
O programa que foi seguido mais vezes consistiu em sair logo a seguir à audiência das quartas-feiras, rumo a Tor d'Aveia, a uma hora de Roma, e só regressar ao Vaticano no dia seguinte à tarde. Uma tarde inteira e uma manhã, para passear por aqueles caminhos montanhosos dos Abruzzi!
João Paulo II passava a noite num casarão onde estavam alojados estudantes universitários a terminar teses de doutoramento, juntamente com alguns professores da Universidade Pontifícia da Santa Cruz, dirigida pelo Opus Dei. Ao lado, existe uma escola e um centro de formação para raparigas, também do Opus Dei: elas é que se encarregavam de toda a logística e das refeições. O Papa queria pratos muito simples e algumas vezes apenas um farnel para andar pelo monte, mas as cozinheiras deviam concentrar-se especialmente, porque os polícias italianos ainda hoje se recordam daquelas sopas! Daqueles bifes! Daquelas saladas!...
Os relatos dos universitários que conviveram com o Papa nestas ocasiões são mais sóbrios e mais centrados noutros aspectos. Lembram-se especialmente das conversas e, algumas vezes, de diálogos pessoais.
As raparigas da escola ao lado contam que organizavam ranchos folclóricos para cantar ao Papa, pelos vistos com grande êxito (segundo as próprias), além de dizerem ao Papa, em prosa e em poesia, que rezavam muito por ele e que estavam muito felizes com a sua visita.
No conjunto, contando os funcionários administrativos do Estado italiano, os polícias, os universitários, as alunas da escola e do centro de formação e os guardas suíços, mais de mil pessoas, ao longo de duas décadas, sabiam destas «fugas» de João Paulo II. Todas sabiam que o Papa só poderia manter estes escapes se não se tornassem públicos e todas corresponderam com uma lealdade absoluta. Ninguém disse uma palavra, até estas histórias se conhecerem, durante o processo de canonização. Nenhum polícia contou em casa quem tinha encontrado naquele dia; nenhuma aluna contou aos pais... absolutamente ninguém faltou à lealdade para com o Papa.
É evidente que os Papas sofrem muito, mas também é verdade que têm experiências destas – em certa medida sublimes – de milhares de pessoas que são leais.

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