Sobre Adolfo Suárez e uma entrevista de Durão Barroso
Numa democracia que é obra comum de partidos rivais, assume particular importância o papel de um árbitro imparcial.
A morte de Adolfo Suárez, o homem que liderou no país vizinho a transição da ditadura franquista à democracia, gerou também entre nós merecidas homenagens de diferentes sectores políticos. Mário Soares observou neste jornal, com a sua clássica sabedoria, que Suárez tinha sido o "anti-Marcelo Caetano". A observação é muito relevante, a mais do que um título.
Em primeiro lugar, o contraste entre Adolfo Suárez e Marcelo Caetano explica em grande parte o contraste entre a transição revolucionária portuguesa e a "transição pactada" espanhola. Edmund Burke costumava dizer que as revoluções são em regra produto de reformas adiadas, e que as sociedades que não têm meios para reformar também não têm meios para preservar. As diferenças entre as transições portuguesa e espanhola ilustram essas observações de Burke. Porque foi capaz de reformar, Suárez evitou a revolução. Porque não foi capaz de reformar, Marcelo Caetano obteve a revolução.
Uma segunda questão importante será discutir os factores explicativos das diferentes transições em Portugal e Espanha. Por outras palavras, porque foi possível a Adolfo Suárez reformar um regime mais ideológico do que o português e porque não foi possível essa reforma num regime mais brando, como o português? Estas são perguntas complexas que devemos propor aos historiadores.
Existe, contudo, uma terceira dimensão que convém não esquecer e que diz respeito à cultura política. O facto de Adolfo Suárez ter sido o "anti-Marcelo Caetano" aliviou em Espanha marcas culturais arcaicas que não foram aliviadas em Portugal. Basicamente, em Portugal, a ausência de uma transição pactada acentuou um arcaico preconceito de propriedade sobre a democracia: o preconceito de que a democracia pertence sobretudo à esquerda e que a direita só a contragosto aceita a democracia.
Trata-se obviamente de um preconceito com alguma razoabilidade, como em regra acontece com os preconceitos. O regime autoritário de Salazar, que Caetano não soube ou não quis reformar, não era certamente de esquerda. O mesmo se aplica ao regime franquista – que foi no entanto reformado a partir de dentro por Adolfo Suárez e pelo rei Juan Carlos.
Mas o preconceito da propriedade da esquerda sobre a democracia não tem qualquer razoabilidade objectiva quando se olha para além do acanhado horizonte ibérico. Na génese dos regimes demo-liberais – sobretudo no mundo de língua inglesa, de onde realmente são originários – não existe qualquer monopólio da esquerda nem da direita. A democracia emergiu nessas paragens como "obra comum de partidos rivais" – uma expressão feliz de Raymond Aron, que lamentava nem sempre isso ser entendido na sua França natal (também ela fértil em arcaísmos rivais).
Em bom rigor, a primeira teorização sobre o papel crucial de partidos políticos rivais no Parlamento, do qual o governo deve emergir e ao qual deve prestar contas, pertence em Inglaterra ao fundador do conservadorismo moderno – Edmund Burke. E a revolução que restaurou um regime parlamentar moderado em Inglaterra, a revolução de 1688, foi na verdade "obra comum de partidos rivais" – os moderados da esquerda e os moderados da direita, por assim dizer.
Este entendimento da democracia como obra comum de partidos rivais esteve presente em Espanha na acção reformadora de Adolfo Suárez e do rei Juan Carlos. E esteve patentemente ausente em Portugal no desempenho de Marcelo Caetano. Foram depois homens como Mário Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral que restauraram entre nós a visão da democracia como obra comum de partidos rivais. Outro contributo decisivo, certamente involuntário, foi dado pelo arcaísmo de Álvaro Cunhal – que deixou bem claro que a democracia tanto pode ter inimigos à direita como à esquerda, vá-se lá saber quais são os piores.
Estas reflexões ganham expressiva actualidade na sequência da excelente entrevista de Durão Barroso à SIC/Expresso do final da semana passada. A proposta de que o próximo Presidente da República tenha o apoio dos principais partidos políticos parece ter provocado surpresa e escândalo entre nós. Mas, para usar um paralelismo, a proposta só pode ser escandalosa numa cultura política herdada de Marcelo Caetano (& Álvaro Cunhal), não numa cultura política herdada de Adolfo Suárez (& Mário Soares, ou Sá Carneiro ou Freitas do Amaral).
Numa democracia que é obra comum de partidos rivais, assume particular importância o papel de um árbitro imparcial – o rei, em Espanha, o presidente da república, entre nós. Durão Barroso teve uma excelente ideia quando sugeriu que esse árbitro pudesse ser proposto pelos partidos políticos rivais que fazem sua a causa comum da democracia.
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