Os cães da utopia

Sol, 14 de Janeiro, 2014  Jaime Nogueira Pinto

Uma das características das utopias - de todas as utopias, mas ainda mais das utopias igualitárias e libertárias - é conduzirem ao contrário dos seus objectivos, quando acontece a desgraça de serem postas em prática.
A organização racional e totalitária de sociedades perfeitas - desprezando e pretendendo transformar a natureza humana - acaba sempre num frenesim de opressão e massacre. Como aquelas seitas proféticas do século XVI (lembro os anabaptistas de Münster, evocados magistralmente por Marguerite Yourcenar em A Obra ao Negro) que aspirando à pureza bíblica e evangélica terminaram na máxima promiscuidade e violência. Ou, a obsessão da instauração da 'Virtude' pelos jacobinos na revolução fundadora da idade democrática, que trouxe o Terror e o primeiro genocídio da História europeia - o da Vendeia.
A tradição comunista está bem ilustrada por um século de crimes, massacres e genocídios. Que, pelo menos em número de vítimas, ultrapassam largamente os hitlerianos e todas as ditaduras fascistas e militares do século XX. O líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, o terceiro da tenebrosa dinastia do 'socialismo real' que resta, decidiu livrar-se do seu tio, Jang Song-thaek, e de cinco dos seus cúmplices, através de um processo de execução que lembra alguns horrores circenses da Antiguidade.
Os condenados foram despidos, metidos numa jaula e entregues à fúria faminta de 120 cães que, para a finalidade, não comiam há três dias. O festim durou cerca de uma hora e a ele assistiu o jovem líder, acompanhado por 300 altos dirigentes do Partido.
A história veio contada no jornal Wen Pei Po, de Hong Kong, órgão oficioso do Partido Comunista chinês. Na sequência, o Global Times, ligado também ao Diário do Povo, outro jornal comunista chinês, criticava duramente o dirigente norte-coreano, aconselhando o Governo de Pequim a afastar-se de Pyongyang.
Jang, um elemento considerado realista, tinha boas relações com Pequim e foi acusado por Kim de conspiração e crimes económicos - vendas a preços baixos de metais, carvão e também de terras - a interesses chineses.
O caso, além de revelar selvajaria do homem e do regime, vem reforçar a tese de uma parte da liderança chinesa de que a RPC não pode nem deve continuar a apoiar o regime norte-coreano. Um responsável militar chinês, o general Wang Hongguang, foi mesmo ao ponto de prevenir os responsáveis de Pequim dos riscos de uma viragem na política da Coreia do Norte, dada a natureza perversa e paranóica do líder. Outros observadores asiáticos e ocidentais, além das características terroristas da execução e do seu objectivo intimidatório a nível da classe dirigente, lembram que Jang era um elemento reformista do regime, uma espécie de Deng Xiaoping.
Ao contrário dos predecessores - Kim Il-sung e Kim Jong-il - que em casos semelhantes de familiares dissidentes, se limitaram a afastá-los ou exilá-los, Kim Jong-un foi a este limite para demonstrar aos compatriotas e ao exterior que está disposto a tudo para conservar o poder. E a Coreia do Norte tem armas nucleares.

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