Em defesa da ideia de Universidade


Há uma causa comum da autonomia da Universidade e da civilidade do debate no seu interior.

Tenho seguido com perplexidade crescente o chamado debate sobre a chamada política de ciência nacional – recentemente acentuado pelo alegado "corte brutal" de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento da FCT. É um espectáculo penoso, que põe em causa algumas regras essenciais de boa conduta que sempre distinguiram a vida universitária. Quem valoriza a ideia de Universidade e compreende o papel crucial que ela tem desempenhado na civilização ocidental deve prestar atenção – e deve ficar preocupado.
Em primeiro lugar, há o cortejo de intervenções públicas insultuosas de colegas contra colegas e contra instituições universitárias específicas, incluindo neste jornal. É uma primeira crucial regra universitária a ser quebrada. Em vez de argumentos e de respeito mútuo, o debate é manchado por acusações pessoais e insinuações torpes. Esta atitude é totalmente contrária à elevação que deve caracterizar a vida universitária. Sem essa elevação, seria impossível o livre inquérito que deve distinguir a atmosfera da Universidade.
Mas, mais grave do que os insultos pessoais – que ficam exclusivamente com quem os pratica – é a politização ostensiva desses insultos. Um princípio fundamental da vida universitária é que as divergências político-partidárias ficam à porta. Na Universidade não há lugar para ortodoxias políticas. Todos os argumentos são à partida aceites para escrutínio, com base nos seus próprios méritos intelectuais. Não há "ciência proletária", nem "ciência burguesa", nem ciência com adjectivos. Tudo o que há é ciência: um espaço aberto de conjecturas e refutações, de conhecimento tentativo e falível, onde não há lugar a doutrinas políticas oficiais.
Uma das muitas experiências memoráveis que guardei da minha passagem por Oxford foi a intervenção de Ralf Dahrendorf, no início da primeira guerra do Golfo, em 1991. Dirigindo-se aos estudantes e professores do Colégio que dirigia, o St. Antony's, Dahrendorf disse que o país estava em guerra, mas que dentro do Colégio e da Universidade não havia guerra. "Lá fora há uma guerra que é séria, e nós apoiamos os esforços das nossas tropas em defesa da liberdade. Mas é por causa dessa mesma liberdade que dentro do Colégio não há guerra. Todas as opiniões são respeitadas – mesmo as que defendam o inimigo – e todas serão lealmente submetidas à crítica livre e moderada" (cito de memória).
Portugal não está obviamente em guerra. Mesmo que estivesse, segundo Dahrendorf, o espírito de guerra não devia ser admitido no seio da Universidade. Mas, o que nós estamos a assistir, sem estarmos em guerra, é a transposição para o ambiente universitário de uma linguagem de guerra de classes, de guerra civil de classes – que é simplesmente chocante.
É importante recordar que as universidades são das mais antigas instituições da civilização ocidental. Sobreviveram a mudanças de regime, revoluções e contra-revoluções, guerras civis e campanhas de politização de sinal contrário. Onde sobreviveram e sempre que sobreviveram, isso deveu-se a que souberam preservar a sua autonomia e civilidade.
É possível argumentar que essa autonomia foi sendo progressivamente ameaçada à medida que o financiamento das universidades ficou gradualmente mais dependente dos dinheiros públicos – como é o caso dominante entre nós e em vários países da Europa continental. Esta dependência dos dinheiros públicos encoraja o sectarismo. Existindo várias perspectivas em debate, uma das partes recusa a discussão, reclamando do Estado, simplesmente, sempre mais dinheiro aqui e agora.
No entanto, esta é, apenas, a minha opinião particular. Sei que muitos dos meus colegas pensam que a Universidade e a investigação devem ser predominantemente financiadas pelo Estado. Respeito obviamente essa opinião. Mas receio ter de dizer que esses colegas têm uma responsabilidade acrescida na defesa da civilidade do debate actual. O ponto aqui relevante não é o da análise substantiva de políticas para a ciência, onde as opiniões naturalmente divergem. O ponto relevante é a defesa comum, entre colegas com opiniões divergentes, de uma causa comum: a causa da autonomia da Universidade e da civilidade do debate no seu interior.
PS: A British Historical Society of Portugal (BHSP) realizou no passado sábado o seu almoço-palestra anual. Nick Lack recordou eloquentemente a visita do Duque e Duquesa de Windsor a Portugal, no Verão de 1940, e a tentativa nazi de os sequestrar. A abrir a sessão, Clive Gilbert, o Presidente da BHSP, recordou que Portugal celebra este ano o 40.º aniversário da instauração da democracia, e que a sociedade se associa às celebrações. Mas advertiu que não podemos esquecer outro importante 40.º aniversário: o da própria BHSP, fundada em Abril (dia desconhecido) de 1974. Aqui fica o devido lembrete.

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