O poder do preconceito

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2014-01-27


Preconceito e discriminação são influências surdas e poderosas. A sua força vem de cada um, consciente dos preconceitos dos outros, ser sempre cego face aos seus. As injustiças mais infames têm motivos razoáveis para quem as comete. Isso é paradoxal num tempo que defende a igualdade, repudiando racismos e exclusões, e se acha imune a tais desvios. Censurando antigas intolerâncias, caímos descuidadamente em novas. O recente filme O Lobo de Wall Street, de Martin Scorcese, mostra isto num dos grupos mais desprezados e injustiçados de hoje, os financeiros.
Um paralelo clarifica a questão. Em 1990, o realizador apresentou a obra Goodfellas (Tudo Bons Rapazes), a adaptação de Wiseguy: Life in a Mafia Family, de Nicholas Pileggi (Simon & Schuster, 1985), biografia de Henry Hill, um mafioso que depois de preso denunciou os cúmplices. O seu último filme adapta o livro The Wolf of Wall Street (Random House, 2007), autobiografia de Jordan Belfort, um corretor desonesto que na cadeia denunciou os comparsas. Parece autocitação, mas com uma diferença: o crime organizado, tema da primeira história, sendo abertamente ilegal, tem implícita a origem do mal. Mas corretagem é não só legítima, mas útil e necessária.
Assim os delitos de Belfort levantam interessantes problemas éticos, técnicos e conceptuais, que ficam à margem do filme. Este prefere dedicar-se obsessivamente a documentar obscenidades e drogas. Mal somos informados das intrujices dos profissionais, que são o interesse do caso, para se detalhar com requinte à bestialidade dos seus tempos livres. Apesar da flagrante omissão, o enredo aguenta a credibilidade graças ao preconceito generalizado de que em Wall Street são todos aldrabões.
O filme está muito bem feito e o protagonista DiCaprio tem interpretação soberba. Mas o assunto não é corretagem, é deboche; o qual, em si, nada tem que ver com a satirizada indústria financeira. Aliás, a indústria cinematográfica, que faz a crítica, é mais famosa por isso. A este truque subtil e velhaco os autores juntam uma distorção evidente: seria impossível criar e desenvolver qualquer empresa no exigente mundo de Wall Street apenas com ignorantes gananciosos vendendo lixo e cometendo fraudes. A caricatura grotesca das complexas operações só resiste porque o público está disponível para acreditar o pior desse meio, sem se dar conta da injustiça.
As nossas acusações contra os financeiros têm razões válidas, mas, como em todas as xenofobias, nascem da extrapolação das maçãs podres para o pomar. O caso de Belmont é exemplo óbvio. Muito da história do filme é verdadeira e escabrosa, mas ela própria manifesta não só a sua extravagância, mas que o sistema funcionou: menos de dez anos após iniciar operações, a Stratton Oakmont foi banida do mercado em 1996 e os quadros encarcerados. Mas nada nos liberta da certeza de tal aberração ser representativa. O espectador sai da sala convencido de ter visto um retrato fidedigno do sistema.
Discriminar os ricos parece justiça, como a guilhotina da Praça da Revolução. Mas, além de injúrias, ela gera erros. Hoje é impossível declarar alguns factos óbvios e relevantes, como que o sector financeiro é central na economia e no desenvolvimento, e que a sua própria operação exige grande profissionalismo, honestidade e rigor. Afirmar tais verdades suscita, na melhor das hipóteses, um sorriso de incredulidade semelhante ao que na Alemanha há oito décadas implicava o respeito pelos judeus. Aliás, este próprio texto, ao defender as finanças, sujeita-se a censura equivalente à de "amigo dos pretos" na América racista dos anos 1960.
O preconceito é uma influência muito poderosa. Permite até a um criminoso como Belmont que, depois de ganhar fortunas a enganar milhares com loucuras financeiras, ainda faça outra fortuna a narrar as suas orgias, convencendo até um reputado realizador como Scorcese a filmá-las. E no final o réu da paródia acaba por ser o sistema financeiro. O qual sustenta não apenas Hollywood, mas os empregos de todos os espectadores.

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