O Panteão de chuteiras
Se me perguntarem quem é que prefiro ver no Panteão Nacional, se Óscar Carmona se Eusébio, eu voto obviamente em Eusébio. O Panteão Nacional, embora parco em sepulturas (são apenas dez), mesmo assim consegue o prodígio de ter gente que não merecia lá estar, fruto da época turbulenta em que foi criado (1916) e de meio século de ditadura.
Mas inverter a discussão sobre se Eusébio deve ou não ir para o Panteão argumentando, em delírio hiperbólico, que ele é muito maior do que a Igreja de Santa Engrácia e merece melhor companhia é, digamos assim, uma entrada com os pitons à frente, que não me parece que seja muito útil ao debate.
Talvez seja ingenuidade minha, mas eu simpatizo com a ideia republicana de existir um local digno e prestigiado onde homenagear os heróis da pátria, e aborrece-me quem disso desmerece. Qualquer país decente deve prestar tributo àqueles que "se vão da lei da morte libertando", para citar um senhor que lá não está e merecia estar – é uma questão de identidade nacional e de respeito pela memória. E é também por isso que me faz alguma impressão imaginar o Panteão, daqui a 70 ou 80 anos, cheio de homens do futebol. Para o ano é Eusébio. E num futuro que se quer distante há-de ser Cristiano Ronaldo e José Mourinho, que hoje em dia têm uma projecção internacional como Eusébio nunca teve.
A existência de um critério compreensível é muito importante, e a Lei n.º 28/2000, que regula as honras do Panteão Nacional, define-o com bastante clareza: ele destina-se "a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao País, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade".
A não ser numa muito vaga definição de "expansão da cultura portuguesa", tenho muitas dúvidas que Eusébio caiba com facilidade naqueles critérios. E ainda bem que não cabe. Não me entendam mal: eu adoro futebol, sou sócio do Benfica e tenho consciência da importância de Eusébio na história do desporto português. Mas recuso terminantemente equivaler tudo, numa espécie de terraplanagem estética e ética, que coloca um futebolista, por mais brilhante que ele seja, no mesmo patamar simbólico, enquanto herói de uma pátria, em que estão os artistas, os cientistas ou os defensores da liberdade.
Eusébio não é Aristides de Sousa Mendes, que não está lá. Jogar bem à bola não tem o mesmo valor de salvar milhares de vidas. Eusébio não é Salgueiro Maia, que não está lá. Jogar bem à bola não tem o mesmo valor de derrubar uma ditadura e recusar todas as prebendas. Eusébio não é Amália, que está lá. Jogar bem à bola não tem o mesmo valor que elevar a única criação artística genuinamente portuguesa – o fado – a patamares até hoje inultrapassados.
Panteão, em grego, significa o conjunto de todos os deuses (pan+theos). E se formos guiados pela etimologia, talvez faça sentido, no século XXI, enchê-lo de figuras ligadas ao futebol, essa verdadeira religião dos tempos modernos. Mas não consigo aceitar essa opção sem sentir que algo de fundamental se está a perder. Não é nada contra Eusébio. É tudo contra o relativismo da contemporaneidade, ainda que sob o alto patrocínio da Assembleia da República.
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