Aceitar a incerteza

Carla Hilário Quevedo
ionline 11 Jan 2014
Na verdade, o que conta absolutamente na vida é aquilo que consideramosmais importante

Uma das personagens de Quentin Tarantino de que mais gosto aparece no filme "Pulp Fiction" e é interpretado por Harvey Keitel, por quem me apaixonei muito antes de me casar. A paixão surgiu não neste filme, mas num outro, "Bad Lieutenant", de Abel Ferrara, em que Keitel faz de polícia corrupto, drogado e alcoólico, que se comporta masculinamente como se as leis fossem um pormenor a ignorar. No filme de Tarantino, Keitel é a pessoa que bate à porta e resolve problemas. Ele é o "cleaner", aquele a quem se telefona quando as coisas dão para o torto e resolve os problemas através da limpeza, com toda a amoralidade que a actividade implica. Keitel faz desaparecer cadáveres. É mórbido, mas do ponto de vista psicanalítico é uma possibilidade sexy.
"Fazer desaparecer" aproxima-se da ideia de que os problemas se resolvem por um passe de magia. O equivalente possível e legal é esquecer. Mas não é tão fácil. Nem me parece que dependa da nossa vontade. Esquecer é uma forma de resolver problemas. Há quem durma sobre assuntos, mas os cadáveres lá continuam em avançado estado de decomposição, sem ninguém para limpar. No entanto, a melhor solução para problemas muito complicados de difícil desenlace e resolução é a adoptada por Alexandre Magno na célebre história do nó górdio, um nó impossível de desatar, com que Alexandre se deparou quando chegou à cidade de Górdio. Rezava a lenda que quem conseguisse desatar o nó seria rei e senhor da Ásia Menor. O nó, entretanto, para ali estava, insuportável como um cadáver, há quinhentos anos. Alexandre chegou, olhou para aquilo e cortou o terrível nó com a sua espada, resolvendo de vez o problema de séculos. Também houve um Rei Artur para uma espada enfiada por magia numa pedra. Aqui a magia serviu para dificultar a tarefa. Mas voltando ao glorioso Alexandre, talvez o macedónio tenha sido o precursor da ideia de que, se não há solução, então também não há problema. É uma espécie de magia, mas mais racional. Na verdade, o que conta absolutamente na vida é aquilo que consideramos mais importante. São estas as decisões que contam, nem sempre se apresentam com clareza, e talvez seja essa a sua verdadeira natureza. As soluções evidentes reflectem a ausência de problemas.
Tudo para dizer que na verdade a vida é mais complicada do que imaginamos e a simplicidade na decisão, a rapidez, a certeza, etc., possivelmente reflectem a pouca importância daquilo que se está a decidir. Depende, naturalmente, da capacidade de discernimento de cada um. É quando a incerteza nos acompanha, a angústia com possíveis decisões nos tira o sono, que sabemos estar perante as questões que importam na nossa vida. A solução está muito possivelmente em continuar a pensar, ir decidindo aos poucos.
Traduzi há dias uma piada contada por Robert Menchin, em "101 Classic Jewish Jokes: Jewish Humor from Groucho Marx to Jerry Seinfeld". Prevêem um dilúvio. Daqui a cinco dias choverá sem parar e o mundo ficará submerso. O dalai lama dirige-se aos budistas e diz: "Meditem e preparem-se para a vossa próxima reencarnação." O Papa dirige-se aos católicos e diz: "Confessem os vossos pecados e rezem." O rabino chefe de Israel vai à televisão e anuncia: "Temos cinco dias para aprender a viver debaixo de água." Sejamos judeus.

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