"Desconsolidação" da democracia?

João Carlos Espada | Público | 20/01/2014

É o entendimento sobre regras gerais, entre sectores moderados da esquerda e da direita, que permite o enraizamento da democracia.
A edição de Janeiro do Journal of Democracy deu já o sinal de partida para a grande celebração da liberdade e da democracia que decorrerá ao longo de 2014. Passam quarenta anos da revolução portuguesa de 1974, e vinte cinco da queda do Muro de Berlim.
O 25 de Abril português inaugurou a Terceira Vaga de democratização mundial, durante a qual mais de cinquenta países transitaram de regimes autoritários, de direita ou de esquerda, para democracias constitucionais. Em 1989, a Polónia abriu a segunda fase da Terceira Vaga, marcada pela implosão das ditaduras comunistas na Europa central e oriental.
Sinalizando este duplo aniversário que marcará o ano de 2014, o Journal of Democracy acaba de dedicar um dossier ao tema da Terceira Vaga. Marc Plattner, Larry Diamond, Francis Fukuyama e Donald Horowitz participaram num animado debate em Washington, que a revista reproduz. (Plattner e Diamond virão aliás a Lisboa, a 20 de Fevereiro e 18 de Março, no âmbito das comemorações).
Naquele debate, Larry Diamond e Donald Horowitz questionam o conceito de "democracia consolidada", alertando para a fragilidade permanente das instituições democráticas. Estas assentam num vasto conjunto de variáveis que podem a qualquer momento ser postas em causa.
A emergência de um partido abertamente nazi na Grécia, com sete por cento dos votos, leva Diamond a conjecturar se não deveríamos introduzir o conceito de "desconsolidação da democracia". O facto de a Grécia fazer parte da União Europeia, prossegue Diamond, não é suficiente para apagar a gravidade daquele fenómeno. Outros países europeus registam também acentuada ascensão eleitoral de partidos extremistas.
A verdade é que os indicadores de uma "democracia consolidada" não são inteiramente claros. Samuel Huntington tinha apresentado como factor crucial o chamado "double turnover test": a realização de pelo menos duas eleições livres com mudança das maiorias vencedoras. Fukuyama sublinha que este indicador, sendo crucial, não é suficiente. Uma democracia consolidada, ou talvez institucionalizada, carece também de um Estado de direito consistente, com separação efectiva de poderes, independência do judiciário, e autonomia da sociedade civil face ao Estado. Precisa ainda de um sentimento de lealdade comum, em regra de tipo nacional, em que as minorias estejam dispostas a respeitar as decisões da maioria e estas sejam dispostas a não perseguir as minorias.
Todos estes factores reconduzem-nos ao pré-requisito essencial que, segundo Larry Diamond, tem permitido transições à democracia: "a percepção por sectores significativos das elites de um país de que a democracia, por diferentes e variados motivos, corresponde aos seus interesses". É esta percepção que gera a emergência de sectores moderados em ambas as alas do espectro político, usualmente designada por direita e esquerda. Estes sectores moderados rivais decidem então afastar-se dos extremos das suas alas respectivas. E preferem então mutuamente aceitar regras gerais de funcionamento democrático para dirimirem os seus interesses rivais.
É basicamente este entendimento sobre regras gerais, entre sectores moderados de alas rivais, a esquerda e a direita, que permite o enraizamento da democracia. Em contrapartida, se este sentimento comum enfraquecer, podemos assistir ao que Diamond designou por "desconsolidação da democracia".
Vários factores podem conduzir a esta "desconsolidação". Em regra, eles estão associados a um crescimento acentuado dos sectores extremistas de uma ala, ou das duas, do espectro político. Esse crescimento pode levar os sectores moderados da ala respectiva a apostar também na radicalização do discurso político - muitas vezes com o legítimo objectivo de reconquistar eleitorado ao sector radical da sua ala.
Pode então ocorrer o efeito "bola-de-neve". A radicalização dos sectores moderados de uma ala gera a radicalização dos sectores moderados da outra - que vão justificar o seu próprio radicalismo como resposta à radicalização anterior dos moderados da ala rival. Esta escalada de radicalização mútua pode então conduzir ao questionamento das regras gerais da democracia - ficando criadas as condições para, sob qualquer pretexto menor, serem subvertidas essas regras.
Pode este processo ser travado? A resposta deve ser procurada nas democracias mais antigas, onde a radicalização tem sido sempre mantida nos limites das regras democráticas. E um dos factores distintivos dessas democracias é a firme adesão da direita e da esquerda moderadas às vantagens da regras democráticas. É essa atitude de fundo que lhes permite manter nas margens os respectivos sectores extremistas.
Talvez não seja inútil recordar este contrato de viabilização democrática, na altura em que celebramos os quarenta anos do 25 de Abril.

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