Acédia: o demónio do meio-dia

Pe. Alexandre Palma
A Voz da Verdade, 2014-01-05

Reconheço que aprecio o esforço de quantos procuram e inventam palavras novas. Esses parecem ter percebido, com aguda lucidez, duas coisas fundamentais. Em primeiro lugar, que a linguagem não esgota a realidade. Por isso não nos podemos acomodar às fórmulas já estabelecidas. Mas, por outro lado, que precisamos da linguagem, não apenas para dizer, mas também para compreender. Não temos alternativa melhor. Por isso, a sadia insatisfação com os limites da nossa linguagem não se resolve apenas com o silêncio, mas também com essa busca de um novo dicionário para a vida.
Na recente exortação «A Alegria do Evangelho – Evangelii Gaudium» do Papa Francisco vemos isto mesmo em acto. Como alguém recentemente sugeria o termo «primeirear» deverá, a prazo, entrar para os léxicos das nossas línguas. O que quer dizer o verbo «primeirear»? Explica-o o seu próprio inventor: significa «tomar a iniciativa» (cf. EG 24). E uns quantos números mais adiante inventa uma outra palavra (que, reconheça-se, soa particularmente estranha!): «deveriaqueísmo». Com tal neologismo indica-se aquela atitude de quem opina acerca de tudo sem realmente se comprometer com nada (cf. EG 96).
Mas como pouco há de novo neste nosso mundo, no mesmo documento o Papa aventura-se também em resgatar dos arquivos da história termos que se-nos tornaram estranhos. Como se essa insatisfação com a linguagem não nos lançasse somente para à frente em busca de novas palavras (neologismos), mas nos fizesse ainda olhar para trás a fim de reencontrar termos que deixámos pelo caminho («paleologismos»). Tal é o caso de uma palavra a que o Papa dedica várias linhas: «acédia». Fala da «acédia paralisadora» que inibe o empenho dos cristãos na obra da evangelização. Fala da «acédia pastoral» em que caímos seja por irrealismo, seja por vaidade, seja por uma despersonalização do nosso agir, seja por nos vermos esmagados pelos ritmos da vida (cf. EG 81-83). Estes desenvolvimentos, porém, não respondem à questão essencial: que quer dizer «acédia»?
A «acédia» é uma palavra difícil tradução. Ela é uma expressão grega que significa qualquer coisa como negligência, indiferença, tristeza, tédio. Shakespeare tomava por indecisão o que chamava de «acédia saturnina». Esta expressão dá nome a um estado larvar de torpor e desencorajamento que faz nascer em nós um enfado generalizado para com a vida. Para o Papa, «acédia» diz um «estado de descontentamento crónico que nos mirra a alma» (cf. EG 277). Este termo, caído no esquecimento, pertence à mais antiga tradição cristã. Dele, mas sobretudo da realidade a que ele dá nome, se ocuparam os Padres do deserto, isto é, os pais da vida monástica cristã (como Evágrio Pôntico ou João Cassiano). Eles listavam a «acédia» entre os vícios capitais que assaltam a alma. Talvez por isso, viam nela o «demónio do meio-dia», hora em que o calor do deserto amolecia o ânimo dos monges e derretia a firmeza dos seus espíritos.
Não vivemos nos desertos do Egipto, mas nem por isso desconhecemos a «acédia». Não lhe chamamos assim. Modernamente chamamos-lhe outra coisa. Chamamos-lhe «depressão». Essa palavra velha continua, pois, a falar aos tempos novos. Talvez esteja ainda por explorar a relação entre a «acédia» espiritual de que falavam os antigos e a depressão anímica experimentada pelos modernos. Mas a realidade parece coerentemente a mesma, afectando hoje como antigamente não apenas os indivíduos, mas também as estruturas eclesiais e sociais. E é bom que dêmos hoje a esta letargia a mesma atenção que lhe dedicaram esses mestres antigos. Para isso inventaram essa palavra. Para isso no-la recorda o Papa.

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