Dantes é que era

Inês Teotónio Pereira , i-online 3 Nov 2012
E é no âmbito desta catarse sociológica que chegamos a uma das mais sólidas evidências dos tempos modernos: dantes é que era fácil ter filhos


Nada como esta frase para criar o consenso nacional. Morremos de saudades de dantes e passamos a nossa existência a reclamar por dantes com uma lágrima no canto do olho. Se pudéssemos vivíamos sempre em dantes. Emigrávamos para lá. Porque dantes é que era. Dantes é que se sabia educar, dantes é que os homens eram honestos e as mulheres virtuosas, dantes é que se trabalhava, dantes é que se respeitavam as pessoas, dantes é que o país era respeitado, dantes é que se poupava, dantes é que havia maneiras, dantes é que se podia andar na rua, dantes é que a esquerda não era burguesa e a direita era católica, dantes não havia tantos gatunos, dantes havia princípios, dantes os rapazes eram homens a sério, dantes os jovens tinham mais de dois neurónios. Enfim, dantes é que era. E qualquer dantes é melhor do que agora, seja esse dantes de há cinco, de há 20 ou de há 40 anos atrás.
Agora não. Agora está tudo ao contrário. Não há ponta do presente por onde se possa pegar. O país é o mesmo e as pessoas estão só um pouco mais velhas, no entanto, todos sabemos que está tudo do avesso. É um facto. O presente é uma desgraça. E o mais estranho é que ninguém sabe porquê. Há teorias várias sobre a origem desta desgraça que vão da televisão à CEE passando pelo Mário Soares, a minissaia, os bancos, a PAC ou a globalização, mas não há consenso e a pouca vergonha adensa-se sem que os verdadeiros culpados sejam denunciados.
E é no âmbito desta catarse sociológica que chegamos a uma das mais sólidas evidências dos tempos modernos: dantes é que era fácil ter filhos. Agora, com o mundo assim, é quase uma maldade ter filhos pois eles estariam bem melhor não existindo. Agora não há condições. Dantes havia condições e a prova disso é que nós nascemos todos dantes.
Ora se é um facto que dantes a esquerda era menos burguesa e a direita mais católica, já não concordo com esta última evidência. E porquê? Porque não imagino como seria ter filhos sem, por exemplo, uma máquina de lavar roupa ou de lavar loiça, como dantes, em que existiam alguidares, sabão azul e branco e tanques como alternativa. Também não acho que fosse simples ter filhos sem microondas, papas instantâneas, escolas por todo o lado, hospitais e centros de saúde em cada concelho, programas de televisão infantis a todos os minutos, direitos da criança em catadupa, carros ou elevadores. Como era dantes. Imagine como seria ter filhos sem epidural, licenças de maternidade ou fraldas descartáveis? Para onde ia todo aquele cocó? E o alfinete da fralda seria legal? Como é que se fazia o jantar numa hora e sem a ajuda inestimável dos hipermercados? Quando é que se tinha tempo para trabalhar? Como é que se faziam e transportavam as compras? Quem transportava as bilhas de gás para podermos aquecer os nossos meninos à noite? E como é que se ia para o Algarve sem auto-estradas? E tudo isto sem telemóvel para podermos controlar os nossos filhos.
Dantes, meus senhores, é que não era. Dantes só era mais fácil ter filhos para quem tinha mais dinheiro. Agora, no malfadado tempo presente, não há crise que nos roube a máquina de lavar roupa – uma das mais relevantes protagonistas das funções sociais – ou as fraldas descartáveis – uma das mais importantes invenções em prol do incremento da natalidade. Dantes era uma grande porcaria.

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