Os próximos tempos não vão ser mais fáceis

Público 2012-07-06 José Manuel Fernandes

Suspeito que, na Europa, o futuro imediato se arrisca a ser ainda mais complicado do que o passado recente


Há três semanas, terminei esta minha crónica fazendo votos para que a que a Europa se conseguisse adaptar às novas condições de relativa escassez em que vai ter de viver sem voltar a mergulhar nos seus dramas eternos. Hoje estou menos optimista sobre se isso será possível.

Uma das grandes dificuldades das sociedades é verem-se ao espelho e perceberem, a tempo, que alguns dos problemas que enfrentam as obrigam a mudar. É especialmente difícil perceber, por exemplo, que os recursos a que estamos habituados vão acabar. No passado, houve mesmo civilizações que desapareceram por não se terem apercebido a tempo de que estavam a desbaratar os seus meios de subsistência. Jared Diamond, no seu livro Colapso, conta-nos como isso se passou na ilha da Páscoa, onde o povo que ergueu as gigantescas estátuas cortou a floresta até à última árvore, autocondenando-se à extinção. Ou como a exaustão dos recursos agrícolas liquidou a civilização maia. 

A Europa pode estar a passar por uma fase semelhante. Durante as décadas do pós-guerra, democracia, desenvolvimento económico e progresso social andaram de tal forma de mãos dadas que permitiram criar as sociedades afluentes que ajudaram a derrotar a ilusão comunista e a unificar o continente. Terá sido um triunfo efémero, muito mais efémero do que então se imaginou. Praticamente desde o momento da euforia - momento que também foi o da criação do euro - que os motores do crescimento quase deixaram de funcionar.

Os primeiros sinais de sérias dificuldades surgiram no Reino Unido ainda na década de 1970, nos países nórdicos na década seguinte. E há pouco mais de dez anos olhava-se para a Alemanha como o "homem doente" da Europa. Políticas reformistas enérgicas permitiram reverter as situações nesses países, mas sem ilusões: não haveria regresso aos anos dourados.

Uma das pessoas que primeiro se aperceberam disso foi o historiador (e homem de esquerda) Tony Judt que, já em 1998, no seu livro A Grand Illusion? Essay on Europe, considerava que não se reviveria facilmente, ou sem outra catástrofe, o consenso social que, a partir de 1945, havia moldado o continente europeu. Judt gostaria de ver regressar os tempos áureos da social-democracia - e dedicou a esse sonho outro livro, Ill Fares the Land (Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos, na tradução portuguesa) -, mas reconhecia que, "se a social-democracia tem um futuro, ele será como social-democracia do medo". É uma boa antevisão dos tempos que estamos a viver, pois o medo parece comandar cada vez mais a política na União Europeia e em cada um dos seus Estados-membros. Medo de um futuro que será pior do que o passado.

Como é que chegámos aqui? Como é que a Europa, em pouco mais de uma década, deixou de ser a área económica que sonhava ser a mais dinâmica do mundo (lembram-se da Estratégia de Lisboa?) para se tornar num problema para o mundo? A resposta mais simples, e talvez a mais verdadeira, está na incapacidade que os modelos europeus tiveram de se adaptarem aos novos tempos. 

O modelo europeu assentava em dois pilares: uma economia forte e um Estado social inclusivo, que se apoiavam mutuamente. Os problemas começaram quando a economia deixou de ser forte. Basta pensar que, nas últimas décadas, a Europa perdeu quase metade da sua quota na produção industrial do mundo, e perdeu-a a um ritmo muito mais elevado do que se imaginava possível. Pior do que isso tem sido a incapacidade de gerar inovação. Mesmo a economia alemã, a que continua a ser competitiva, não é inovadora, como sublinhava há dois anos, em entrevista a este jornal, Félix Ribeiro: a Alemanha "é extraordinária a melhorar aquilo que já faz há quase 150 anos - automóveis, mecânica, química - (...), mas tem uma grande dificuldade em inovar". Nesta frente todos perdem para os Estados Unidos, onde a perda de capacidade industrial clássica tem sido compensada pela inventividade de Google, Apple e por aí adiante. 

Já o Estado social confronta-se com ter de pagar facturas cada vez mais altas (devido ao envelhecimento da população) num tempo sem crescimento económico. Pior: como notou Josef Joffe, editor do jornal alemão Die Zeit, na sua crítica a Judt, o culto da benevolência da intervenção dos Estados esqueceu que estes também criam "as suas próprias regras de poder, gerando privilégios, rendas e clientelas". Foi assim que "os modernos Estados-providência criaram novos interesses corporativos por cada novo benefício". Os Estados, ao arvorarem-se na encarnação do bem, ao procurarem espalhar o bem, não só nem sempre o conseguiram, como corromperam as economias, desvitalizando-as.

É aqui que chegamos ao problema dos recursos. Já não falamos dos recursos tradicionais - terras agrícolas, bens minerais, combustíveis fósseis - mas de outros recursos indispensáveis às sociedades modernas, os recursos financeiros. Porque aquilo que começou a acontecer em muitos países da Europa, sobretudo nos países da Europa do Sul, foi começar a recorrer sistematicamente à dívida - dívida dos Estados e dívida dos particulares - para ultrapassar a dificuldade de conciliar exigências crescentes de consumo com economias que já não produziam suficiente riqueza. Já sabemos o que aconteceu depois.

Se tivéssemos um espelho que nos permitisse ver as sociedades em que nos tornámos, descobriríamos que muitos dos nossos modos de vida não são sustentáveis. Uns por razões ecológicas, mas sobre esses pouco se discute com seriedade e sem loucos idealismos. Outros porque, como europeus, deixámos de estar no centro do mundo. Pensámos que era possível conciliar economias pujantes e competitivas com sociedades totalmente avessas ao risco e sequiosas de protecção. Estamos a pagar o preço dessa ilusão. 

O nosso maior risco não é empobrecermos em termos relativos, pois isso tornou-se quase inevitável. O nosso maior risco é não conseguirmos viver estes tempos de crise prolongada salvaguardando a democracia e a paz. 

Vale a pena recordar verdades pouco recordadas. A primeira é que são raras as democracias que conseguiram superar, sem deixarem de ser democracias, períodos de crise prolongada e de guerra. Só temos disso exemplo no Reino Unido, nos Estados Unidos, na Suécia e pouco mais. A França não entra para esta contabilidade, a Alemanha ainda menos, do resto nem se fala. Apesar de as democracias serem para os bons e para os maus tempos, instalou-se o perigoso discurso de que o seu sucesso depende do bem-estar que conseguem proporcionar aos cidadãos. É um discurso suicida. 

Vale também a pena recordar que a União Europeia foi um sucesso enquanto pôde ser associada a crescimento e prosperidade. Está por provar que consiga manter a mesma coesão e o mesmo apoio popular em tempos de cortes e poupanças. A tensão política actual, as retóricas nacionalistas (até Monti associou o resultado da última cimeira a uma vitória no futebol, de que nem é adepto...), o populismo crescente, mostram como bastou uma crise para a concórdia europeia se transformar em irritações cada vez mais descontroladas. 

Há duas soluções mais ou menos ortodoxas em cima da mesa. Uma é continuar a tentar transformar todas as economias europeias em minieconomias alemãs, capazes de cumprirem as suas regras e terem a sua competitividade. É a solução de Maastricht reforçada. Não funcionou no passado e não vai funcionar no futuro. A outra é complementar e implica dar um salto no vazio, forçando uma Europa federal sob formas mais assumidas ou mais disfarçadas, mas nunca conseguindo ultrapassar a dificuldade de, por não existir algo que mesmo remotamente pudéssemos considerar um campo político único na Europa, tal construção ser antidemocrática. Estas duas soluções correspondem, no fundo, a duas utopias. Insistir nelas pode conduzir ao mesmo resultado catastrófico a que a prossecução de objectivos utópicos já conduziu tantas lamentáveis experiências políticas. 

Depois de mais uma cimeira europeia em que não se saiu destes paradigmas só posso estar mais inquieto. O futuro próximo arrisca-se a ser ainda mais complicado do que o passado recente.

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