Carta a um amigo sobre a vida espiritual

Agência Eccleisa, 2012-07-10
José Tolentino Mendonça

A espiritualidade não é uma busca epidérmica e apressada de satisfação. Na maior parte do percurso a pergunta que vale não é “o que me sacia?”, mas “qual é a minha sede?”
Falar da vida espiritual é sempre sondar as zonas mais profundas (e por isso também mais reais, mais imperfeitas, mais inacabadas) do nosso coração. A espiritualidade não é uma busca epidérmica e apressada de satisfação. Na maior parte do percurso a pergunta que vale não é “o que me sacia?”, mas “qual é a minha sede?”. Gosto da maneira como os autores clássicos da vida espiritual falam dela como de uma luta. O próprio Jesus lembra que não veio trazer a paz das aparências, mas a espada que penetra as camadas mais íntimas. A vida espiritual é isso: por vezes uma luta, por vezes uma luminosa dança.
Podemos fazer muitos atos ligados ao espiritual ou ao devocional e não estar a construir uma verdadeira experiência de vida espiritual. De facto, esta só cresce quando no centro está uma relação. Não basta crer, nem pertencer. É necessário mergulhar, habitar (ou melhor, saber-se habitado). E tudo o resto: descobrir-se buscado, querido, bem-amado. A vida espiritual não é da ordem do fazer, mas do ser.
Diz-se que estes duros tempos de crise económica, em que todos os dias vemos tombar o modelo que identificava a felicidade com o poder de compra (ou com a sua ilusão), constituem uma oportunidade para a redescoberta do espiritual. Pode bem ser. Mas no lugar de um ídolo, não podemos colocar outro. A vida espiritual não é um oculta-vazios ou um alívio emocional para sociedades à beira de um ataque de nervos. É uma aventura maior, que nos radica na verdade nua do homem e na verdade de Deus. Partamos daí.

Comentários

Anónimo disse…
Que sábias (e belas) palavras. retiro particularmente o seguinte (i) a pergunta deverá ser "qual a minha sede?", (ii) a nossa espiritualidade só cresce quando está no meio uma relação (quando nos sabemos/sentimos "habitados") e (iii)em tempos de crise, não tenhamos a tentação de trocar o "desu-do-consumo" pelo "deus-espiritual" - a aventura da espiritualidade não é de circunstância, antes radica na verdade do Homem, na verdade de Deus. Obg. Pe. Tolentino.
Anónimo disse…
"A vida espiritual não é da ordem do fazer, mas do ser". Visão redutora senhor padre (é o que dá um biblista se por a falar de temas que desconhece na profundidade), pois sendo a vida espiritual a vida no Amor e não havendo senão amor em acto, toda ela é inerentemente activa (embora possa não ser uma actividade) como qualquer especialista em espiritualidade católica lhe dirá.

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