Maria José

Público 2012-07-03 Paulo Rangel

Nestes tempos conturbados, falta-me a opinião de uma portuguesa que via a sua essência como portuguesa

1.Foi algures nos idos de 1998, em vésperas do primeiro referendo sobre o aborto, que conheci pessoalmente a Maria José - Zezinha para os mais próximos, Maria José Nogueira Pinto para o público em geral. Para mim é a Maria José, ou não a tivesse chamado sempre e invariavelmente assim - um modo de chamar que anunciava e denunciava a intimidade distante e a distância íntima que acabámos por cultivar nos 13 anos que haviam de seguir-se. 

Nessa tarde de sol e de primavera, acompanhados pelos amigos comuns que ali nos apresentaram, almoçámos nas margens do Douro, mesmo junto à Ponte da Arrábida. E daí seguimos para uma das sessões preparatórias da campanha do "não", em que supostamente ambos deveríamos falar. Digo supostamente porque, depois de a Maria José ter falado, já quase nada ou mesmo nada havia para dizer. Raras vezes tinha ouvido - e raras vezes ouvi depois - uma intervenção que me tivesse impressionado tanto. Não eram apenas as palavras, não eram somente as ideias, não eram ainda as acções e os programas. Era a Maria José: ela estava no discurso. O discurso era, também e afinal, a Maria José. 

2. A intervenção dessa tarde - entre discurso e debate -, muito para lá do tema e da ocasião, revelava e desvendava a sua autora. A apresentação de abertura, nem curta nem longa, carregada de filosofia, de valores e de utopia, era paradoxalmente uma verdadeira lição de pragmatismo, de conhecimento da realidade, de guias e critérios de acção. E uma vez aberto o debate acorreu o turbilhão das perguntas de gente inquieta e de gente muito diferente que, militando pelo dito "não", tinha mundividências divergentes e contraditórias. Esse teste da audiência, em que o humano se jogou por inteiro, foi ainda mais avassalador. Maria José, que era uma executiva e gestora de tomo, com vasta experiência em grandes unidades administrativas, cultora de uma poderosa racionalidade, ao mesmo tempo que lançava, com zelo, os dados estatísticos, económicos e sociológicos, discorria, com deleite e com cuidado, sobre filosofia, arte e teologia. Nenhum problema, por mais técnico que fosse, escapava ao seu olhar humano, profundamente humano, demasiado humano, daquele humano que conhece e afecta a elegância dos salões e o relento dos que dormem a céu aberto. Não havia nela - e não houve naquela tarde que, mais do que uma tarde, me parece ainda hoje uma manhã - número que não se volvesse em pessoa. Ela gostava de cuidar e cuidar, para ela, era fazer dos números pessoas.

Se me lembro bem, terá sido o primeiro acto da minha primeira campanha "política". Para quem, como eu, duvidava e continua a duvidar da justeza das minhas posições, aquilo não fora, apesar da inquebrantável convicção da Maria José, nem um baptismo de água nem um baptismo de fogo. Aquela "tarde-manhã" fora um subtil derrame de bálsamo. 

3. Até então conhecia a Maria José enquanto figura pública, como qualquer de nós, fosse da sua passagem pela cultura, fosse da sua especialização e experiência nas áreas sociais, fosse da sua residência nas bancadas do Parlamento. Daí em diante fomo-nos cruzando nas mais várias iniciativas, fomo-nos achando numa ou noutra ocasião social, fomos criando uma empatia crescente. E, entretanto, também um pouco por circunstâncias fortuitas e nem sequer coincidentes, fui encontrando aqui e ali o Jaime Nogueira Pinto. Encontros, mais duráveis ou mais fugazes, que manifestamente iam apertando os nós e os laços, os nós e os laços de que fala o Alçada, o Alçada de todas as adolescências tardias. Mas o impulso decisivo - o salto para a amizade, daquelas de quem se lê e de quem se escuta - veio dos lados da Maria João Avillez. A Maria João, com a supina arte de ligar gente, ligou-nos a um programa de rádio. E na rádio, o único meio de comunicação em que a exposição da intimidade não se corrompe em pornografia, o convívio semanal fez o resto - o resto que, viemos todos a descobri-lo já tarde, nunca tinha faltado.

4. A Maria José - desses anos em que estive distantemente próximo - testemunhou-nos a mais importante e talvez a mais carecida qualidade dos políticos e, já agora, dos humanos: a independência de espírito. Assumia as suas convicções fundas e radicadas, mas nunca as apresentou com sectarismo, facciosismo ou fundamentalismo. Colocava-se firme do seu lado da barricada, mas isso nunca a impediu de apoiar um presumível adversário, se o tivesse por competente e credível. Não tinha medo do confronto e da palavra forte, mas poucos terão feito tantas pontes e fomentado tanto o diálogo com ideologias e crenças que pareciam da outra margem. Era detentora de uma visão ideológica global, mas não abdicava de entrar em projectos concretos de sinal diverso e de neles trabalhar em equipa para realizar o bem comum. Vivia a política com paixão, mas nunca deixou de perceber o carácter largamente instrumental dos partidos. Possuía uma grelha teórica invulgar, mas analisava os factos com um detalhe técnico e um conhecimento da natureza humana próprios de uma "self-made-woman".

5. Nestes tempos conturbados, vejo os debates na televisão e falta-me a sua análise. Falta-me o seu conselho, a sua mensagem telefónica, o seu email, o seu artigo de jornal. Mas em especial, depois deste ano de Europa, de que estou tão interiormente próximo, falta-me a opinião de uma portuguesa que via a sua essência como portuguesa. Com a Europa em apuros e as Áfricas, os Brasis e as Chinas a vibrar, precisávamos de ouvir a Maria José, para quem Portugal não era imperial mas imperativo. Faz-me falta e faz-nos falta, apenas um ano depois. Eu sei - porque nos disse pelo seu próprio punho, embora com palavras de "Outrem" - que nada lhe faltará. Mas a nós, a nós portugueses, falta-nos alguém. Desde 6 de Julho de 2011 que há alguém que nos falta.

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