Morte na Vida

Pe. Alexandre Palma
Voz da Verdade, 2012-07-01

Da morte, hoje, pouco ou nada falamos. Não lhe damos direito de cidadania. Excluímo-la das nossas vidas. Sobretudo do espaço público. Parecemos querer viver como se ela não existisse, como se ela não estivesse aí. Será isso sensato? Será isso sequer possível? Para a driblarmos lançamos inconscientemente mão de uma série notável de artifícios. Aceleramos os ritos fúnebres e os tempos do luto. Afastamos o lugar da morte dos espaços do nosso comum viver. Escondemos dos mais novos qualquer presença da morte na vida – será esse um modo realista de os preparar para algo com que eles serão, mais tarde ou mais cedo, confrontados? Construímos uma novilíngua, pejada de eufemismos, que nos permita evoca-la sem a nomear, referi-la adornando a sua dramaticidade. Com fina inteligência, Pascal terá percebido o que está na raiz desta tendência tão humana de querer iludir a morte:«Não tendo os homens conseguido acabar com a morte […] tiveram a ideia de, para se tornarem felizes, não pensar nela». Eu próprio não o saberia dizer melhor que José Luís Peixoto: «esperavam [mas] não a morte, que nós seres incautos, fechamos-lhe sempre os olhos na esperança pálida de que, se a não virmos, ela não nos verá».
Pálida esperança é de facto. Porque a morte vê-nos, por mais que nós lhe fechemos os olhos. Como dizia S. Agostinho: «Tudo é incerto; só a morte é certa (Incerta omnia; sola mors certa)». A morte não é, pois, um opcional da vida. Ela pertence-lhe e saber viver tem sempre algo que ver com o saber morrer. E é exatamente isto que torna a nossa fuga da morte uma certa fuga da própria vida. Enfrentar a questão da morte tem sempre qualquer coisa de busca de sentido para a vida. Antecipar em vida o problema da morte não tem de ser uma cedência ao lado sombrio da existência. Pode mesmo ser o salto para uma liberdade que não empalidece perante essa última fronteira e que nos abre as portas de uma serena sabedoria de vida. O saber da morte é via para um saber viver. Esta é, aliás, uma intuição com longa e sólida tradição na nossa cultura.
Ao desterrarmos a morte do nosso mundo estamos a hipotecar muito do que por ela podemos conhecer acerca da vida e, sobretudo, acerca de como viver. Importará, pois, revisitar o que de morte há na vida. Sem iludir toda a perturbação que a questão da morte traz a todo o viver. Por custoso que seja – e é – é apenas trabalho que antecipamos!
De entre os gestos sociais de reconhecimento público da morte sobrevive ainda o da visita aos cemitérios. Há nele qualquer coisa de antropológico, isto é, de algo profundamente enraizado na nossa natureza humana. Seria um empobrecimento se tal se viesse a diluir (ainda mais). Receio, contudo, que seja exactamente isso que se venha a verificar com a extinção, a prazo, do feriado de Todos-os-Santos (dia privilegiado de tal visita, mesmo se em dissintonia com o seu sentido litúrgico). Teremos de criativamente (re)inventar as formas e os tempos de tal tradição se não quisermos acelerar ainda mais o processo que leva a excluir a morte da vida.

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