Educação e deficiência: uma sentença justa contra uma medida injusta

Público 2012-07-17 Paulo Rangel

É fundamental que se repense a ideia de que não deve haver exames adaptados aos alunos com necessidades especiais


1. Muitas vezes tenho dito o quanto aprecio a política educativa do Governo e, em especial, a liderança conhecedora, firme e realista do ministro Nuno Crato. Em questões localizadas, porém, o efeito automático de decisões administrativas do Ministério da Educação tem-se revelado fonte de graves injustiças. É o caso, de sobremaneira chocante, da submissão dos alunos com necessidades especiais - em particular, com deficiências cognitivas - ao modelo único de exames nacionais (sem qualquer consideração pela sua situação concreta). 

De há muito, contra ventos e marés, que defendo um aumento gradual, mas sensível, do rigor e exigência no ensino. De há muito que preconizo a actual linha política de generalizar a prática da avaliação também por exames. Só um ensino rigoroso e exigente pode promover a inclusão, a igualdade de oportunidades e a mobilidade social. O laxismo e o facilitismo acabam sempre por se revelar como mecanismos de reprodução das desigualdades sociais. 

2. Mas a defesa de uma certa "padronização" e "homogeneização" de procedimentos, decerto ditada pelo reforço da exigência, não pode pôr em causa os direitos dos alunos com deficiência. As crianças e adolescentes com necessidades especiais têm direito ao ensino e ao desenvolvimento da sua personalidade - direitos fundamentais garantidos pela Constituição. Sabemos que as deficiências, físicas e cognitivas, são as mais diversas e requerem respostas muito diferenciadas. Sabemos que o grau de certas deficiências, especialmente cognitivas, obriga mesmo a um ensino especial, já fora do sistema geral. Mas grande parte das deficiências cognitivas - e a fatia de leão das deficiências físicas - é perfeitamente compatível com o sistema geral de ensino, desde que efectuadas adaptações. E é também sabido que o grau de progresso educativo e de realização pessoal destes alunos é tanto maior quanto mais estejam integrados no dito sistema geral. De resto, para todos os estudantes, a presença nas turmas de colegas com necessidades especiais é uma experiência humana e pedagógica altamente formativa - algo que, portanto, mesmo com custos e desvantagens, o Estado e os pais em geral devem fomentar. 

3. Uma parcela dos alunos com deficiência, já integrados no sistema geral de ensino, desenvolve os seus estudos no quadro de um "programa educativo individual". Programa que se traduz, desde logo, numa adaptação às suas capacidades e ao seu historial das metas curriculares de cada disciplina e dos processos de avaliação. Definido esse programa no contexto escolar e homologado pela entidade competente, o aluno é geralmente isento de exames nacionais e as suas provas de exame, que carecem de adaptação, são integralmente realizadas ao nível da escola. 

Contra todas as expectativas, foi emanado, já em Abril, um despacho normativo que passou a sujeitar estes alunos, que frequentassem o 4.º e o 6.º anos, aos exames nacionais. Excepcionou, e só para este ano lectivo, os alunos que frequentassem o 9.º ano, assim introduzindo uma discriminação injustificável entre o 9.º ano e o 4.º e 6.º anos. Nos 4.º e 6.º anos, foram ressalvadas algumas deficiências físicas graves, mas não as cognitivas. E as excepções previstas, aparentemente, vigoram para este ano, mas não valerão daqui em diante...

4. Perante uma tão flagrante injustiça, um aluno com necessidades especiais e seus pais interpuseram uma intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias - que é uma acção urgente, raras vezes bem sucedida nos nossos tribunais. A sentença, justa e digna, representa um grande passo no reconhecimento dos direitos fundamentais aos cidadãos com deficiência. Considera que aquele despacho é inconstitucional porque viola o direito ao ensino - enquanto direito análogo a direitos, liberdades e garantias -, viola a protecção da confiança (altera as regras a meio do jogo) e viola o princípio da igualdade (alunos em situações idênticas têm direitos que outros não têm). Vou mais longe ainda: por detrás da concepção que inspira uma sentença tão lapidar, está a admissão de que esse despacho "nivelador" rasga o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à protecção legal contra a discriminação. É fundamental que o Ministério da Educação - em lugar de entrar na espiral de recursos, useira e vezeira na nossa praxe administrativa - execute esta sentença e tire dela todas as consequências. É fundamental que repense a ideia, aparentemente em voga, de que não deve haver exames adaptados a cada aluno com necessidades especiais. É, aliás, importante que acompanhe a aplicação dos programas individuais e a feitura dos respectivos exames, para garantir que, no nível adequado, a exigência também se estende aos alunos com deficiência. Com tantos professores com "horário-zero", não será seguramente difícil, de futuro, contemplar as situações das crianças com necessidades educativas particulares...

5. Tive conhecimento desta sentença porque a dita intimação foi proposta em tribunal por dois colegas meus. Ao contrário do que, por lapso, no sábado dizia este jornal, não patrocinei esta acção nem intervim nela. Mas tive, de facto, conhecimento da mesma e do seu resultado pelo exemplo extraordinário dos pais deste adolescente e dos seus advogados, com quem partilho a profissão há vários anos. Não se vergaram ao conformismo, à inércia e ao desânimo. E tendo tido conhecimento desta jurisprudência, não posso calar a minha indignação e a minha alegria. Nenhuma política de exigência implica o distanciamento dos cidadãos com deficiência. Eles fazem parte da nossa vida, do nosso mundo e da nossa escola e tornam a vida, o mundo e a escola melhores e mais humanos do que seriam sem eles.

Comentários

Anónimo disse…
Concordo em quase tudo, apenas algumas questões: Foi aprovada a liberdade de escolha do estabelecimento de ensino, não dependendo, portanto, da área de residência dos pais, ficando assim ao critério dos pais/EE a livre escolha de que "tipo" de ensino pretendem para os seus filhos. Porque razão, nós, pais de crianças/jovens com deficiÊncia não o podemos fazer? Porque somos obrigados a sujeitar os nossos filhos a um ensino que se supõe inclusivo, mas que na realidade não o é? Porque razão não podemos optar, desde logo, por um ensino integrado,estruturado e verdadeiramente especializado mesmo que ministrado em instituições dedicadas a pessoas com defificiência? Porque razão para os nossos filhos tudo serve? Até professores sem formação adequada, sem qualquer vocação? Porque razão são muitas vezes excluidos das actividades curriculares? O que peço, não é mais do que o cumprimento de um direito - o respeito pela cidadania do outro, daquele que é diferente! Que sejam, pelo menos, cumpridos os direitos sociais de cidadania, já que sem estes todos os outros são inúteis!

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António