Notícias de um país que também há

Público 2012-07-30
Maria João Avillez

1. Conheço-os, entrevistei-os, testemunhei in loco o seu trabalho fora de portas. Cabia-me moderar o debate que teriam sobre a diplomacia nos países onde se fala português, Brasil, Índia, as várias Africas. O hoje e o ontem de tudo isso.

Era em Coimbra e celebrava-se mais uma sessão do 4º Festival das Artes, promovido pela Fundação Inês de Castro e um belo dia idealizado na Quinta das Lágrimas.

Ouvi mais do que moderei. Não se modera a excelência. Havia antes que desatar o fio que unia a competência, a experiência, o talento de António Monteiro, Francisco Seixas da Costa e Marcello Mathias. E soltar essa lucidez sem ilusões com a pátria ao fundo que de modo tão diverso eles encarnam e representam. E então lembrei-me que estivera frente a um país que também existe - quem diria? - e é bem servido. Aqueles três cavalheiros, concordando ou discordando, foi dele que falaram. Pouco ouvido, escondido pela descrença que em rigoroso exclusivo formata o nosso quotidiano, pouco visto, coberto pelo tremendismo que ocupa a montra da media, lembrei-me desse Portugal que também há, naquela noite quente de Coimbra.

2. Lembrei-me das lágrimas de emoção de Placido Domingo após o último acorde do concerto a seis órgãos de Mafra e do modo como logo a seguir evocou um país que erguera aquele convento, o ornamentara de seis órgãos, produzira aqueles seis organistas e inspirara Leal Moreira, nos idos de Setecentos, a compor a música que ali se ouviu.

Mas os congressistas da Europa Nostra - federação de associações culturais que trabalha em estreita relação com a UE presidida justamente por Placido Domingo - reunidos em Junho em Lisboa tinham o mesmo olhar surpreso: há 40 anos que faziam congressos, mas nenhum com a luz, a pedra, o Tejo, o claustro dos Jerónimos, o desenho do Palácio Fronteira, o verde de Sintra, o azul zangado do Atlântico, o branco harmónico de Évora, as janelas de Guimarães.

Representante português da Europa Nostra, o Centro Nacional de Cultura e o seu presidente, Guilherme d"Oliveira Martins, foram os (aplaudidos) anfitriões: nem um nem outro precisaram, porém, de ficcionar um país ou sequer de o enfeitar para os seus ilustres hóspedes, bastou-lhes mostrar o que existe.

3. Lembrei-me de uma noite destas, quando se começou a ouvir Beethoven na rua. Frente à fachada iluminada do S. Carlos, os músicos fundiram-se com a noite de onde os deuses tinham subitamente arredado um vento gelado. Espalhados pela plateia, nos prédios, nas escadas do largo, no muro, nas esplanadas em volta, crianças, jovens, velhos, casais com filhos, cadeirinhas de bebés, adolescentes louras, estrangeiros de ténis uniam-se num mesmo olhar de mudo reconhecimento. A ideia do Festival ao Largo é portuguesa, o cenário era Lisboa, os artistas, nacionais. Falo de nós, portanto. E desta noite em particular. Mas à mesmíssima hora, em mil outros pontos do país, ouvia-se música, num desdobrar quase vertiginoso de escolhas, ritmos e lugares. Não acredito que todos tivessem apoios ou subsídios.

4. Lembrei-me da minha alegria ao ler os quatro parágrafos do New York Times sobre o filme de Gonçalo Tocha, rodado na ilha do Corvo, É na Terra não É na Lua. Cada vez mais premiado e distinguido por esse vasto mundo fora, esta quase demencial sinfonia foi assinada por dois jovens (o outro chama-se Dídio Pestana) não particularmente "subsidiados", nem particularmente "protegidos". Apoiados neles próprios foram, filmaram, voltaram. Tiveram razão, o (pungente) Portugal deles é uma obra-prima.

5. Lembrei-me de José António Falcão, outro português que vale a pena. Após ter redimido do abandono de décadas o património artístico da diocese de Beja - anos e anos de persistente, paciente e muito sábio trabalho -, o historiador inventou há tempos um festival inadjectivável. Tenho-o visto crescer em idade e "diferença". Nas Terras sem Sombra do seu Alentejo, voltou a ouvir-se este ano música rara, eleita por Paolo Pinamonti (o sempre desejado). A programação foi muito imaginativa, a escolha dos espaços - património edificado ou património ambiental - relevou de critério igualmente raro: natureza e música num mesmo abraço. E ao serão, após os concertos, abriam-se casas de mesa posta e trocavam-se estados de alma molhados pelos nossos excelentes vinhos. Singular, magnífico e português.

6. Lembrei-me de Lisboa este Verão. Nunca a vi assim. António Costa tem posto gente a cantar nos bairros populares e músicos nos jardins públicos, mas o espanto vai muito além de sete notas de música. Há esplanadas e terraços superlotados, comércio aberto à noite, lojas alternativas, livrarias que são jóias, bairros com assinatura própria, ideias engenhosas, áreas recuperadas, hostels renovadamente premiados, surpresas, mercados sui generis, criatividades inesperadas (veja-se o que sucede com as nossas conservas...). Vida. Não é exclusivo da capital, nem sequer fruto da onda turística. É uma volta que operou uma mudança, porque houve gente que acreditou e teve a vitalidade e a vontade dessa fé. Estive há dias no Porto com o mesmo espanto. Não falo da "noite", respondo pelo dia. Zonas reabilitadas, percursos novos, arte e artes, o Douro debruado de vida.

Mas o que me interessa nesta agitação - produtiva - que extravasa o calendário do Verão é que alguém teve de suar por ela, as boas ideias não são de borla. Nada do que vi nasceu por acaso, não foi uma sorte, nem uma oferta. Alguém - muitos "alguém" certamente - preferiu o risco e não temeu o esforço. Pensando que Lisboa, o Porto e por aí fora valiam essa pena. Pensando que o país talvez também valha, Portugal tão pouco contado.

Comentários

Anónimo disse…
Portugal é um segredo bem guardado!

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