Manoel de Oliveira ligado à vida

Rui Osório
Sol 2012-07-27
“Em três ou quatro longas conversas deixou-me uma marca funda. Quase tão funda como alguns dos filmes que me ajudaram a desenhar o mundo dentro da cabeça – a importância do que se pressente e nunca é dito, as palavras que existem não apenas para mostrar mas também para dissimular, tanta coisa que me ofereceu com Francisca, Vale Abraão ou Douro, Faina Fluvial.Manoel de Oliveira. Que nas últimas horas saiu dos cuidados intensivos. Estranha notícia a do seu internamento; vejo-o como um homem jovem dentro de um corpo que não lhe pertence. Há muito mais de dez anos, em sua casa, enquanto me mostrava fotografias dos anos de piloto perguntei-lhe como gostaria de ser recordado. Guardou as imagens, colou os olhos em mim e falou: «Elegante maneira de me perguntar pela morte… Gostaria de o ser como aquilo que sou, não de outra maneira. Procuro a autenticidade e a sinceridade. É aquilo que realmente penso e sinto, o que devo continuar a fazer até ao último dia. Interessa-me a verdade, a minha verdade nua. É um impulso que não domino, já não sou eu que o faço. Há um outro dentro de mim que o faz, limito-me a ser totalmente obediente».
A propósito de uma folha pensei nele. Uma folha mais valiosa do que qualquer bem material que reivindique como meu – nela estão escritos os sonhos que quero concretizar, ideias que acrescento ou corto, conforme mudo de pele e azimute. Guardo-a com zelo. Mimo-a com leituras periódicas, pensamentos e objecções. A folha sou eu no que ainda não fui ou ousei. Pensei em Manoel por ter descoberto que tenho mais sonhos do que tempo para os concretizar; por muito que corra jamais darei vida a tudo o que me pede vida. São sérias as escolhas quando o corpo precisa de dormir mais do que antes. Entendi-o naquele minuto, como certamente ele o terá entendido ainda antes de eu nascer… A diferença é que talvez, num qualquer momento de balanço, tenha decidido concretizá-los a todos e ficar assim de contas acertadas – não admira que a primeira coisa que disse nos cuidados intensivos, pelo menos alguns o juram, tenha sido o desejo de regressar a casa por tanto ter ainda a fazer.
Adorava que tivesse tido o privilégio de o ver sorrir. Como lhe posso explicar esse sorriso? É como se Manoel conservasse a infância e a misturasse com a rebeldia da juventude e a subtileza perversa de um sábio. Já adormeceu num filme dele? Oiça as palavras que guardou para si: «Há pessoas que adormecem nos meus filmes, mas também há quem adormeça a meio do coito e isso não depende do acto em si. Estou a tornar-me popular, mas sei bem que é por aparecer na televisão e ser um homem muito velho. De repente, alguns vêem-me como portador de um segredo de longevidade e aplaudem-me de pé por isso. Mas eu não sou um artista de circo».
Também já adormeci em filmes de Manoel. E já despertei, a ponto de me ser difícil dormir com tanto para pensar ao mesmo tempo. Ele acha que o seu cinema é uma tentativa de escapar à contaminação dos valores humanos. «Quando o amor, a vingança, o ódio ou o sofrimento contaminam as histórias não é necessária grande arte».
Acho um pouco diferente. É um cinema onde, quando acerta, reina a invisibilidade onde tudo realmente acontece. Reconhecemo-lo quando o silêncio nos apanha por um instante que seja. Aí correm pensamentos, mortes e sonhos, ódio e amor. Um alfabeto sem letras. Uma profundeza sem testemunhas. Um abismo de luz e escuridão.
Ficou a pensar na definição. «Sim, talvez. O cinema é uma máquina que, como a fotografia, mostra aquilo que não é. O retrato do seu pai não é do seu pai, é uma imagem onde transparece a ideia do seu pai. O cinema, mesmo que seja um documentário sobre um qualquer acontecimento, é um fantasma da realidade, ou de uma visão da realidade. Quanto mais fantasmagórico for o filme mais real se torna»
Saiu dos cuidados intensivos o homem que um dia foi corredor de automóveis, campeão de salto à vara, trapezista e galã conhecido e cobiçado no Porto. Filho de Francisco, primeiro fabricante de lâmpadas em Portugal, e de Cândida que adorava as suas façanhas desportivas. Um dia, em 1938, viu Isabel à espera do eléctrico e pensou que o seu olhar era diferente. Voltou a vê-la na praia e concluiu que já a vira antes do princípio dos tempos. Isso confessou quando lhe pediu uma dança no Casino da Póvoa. Mas Isabel só dançou o ‘Danúbio Azul’ quando Manoel encontrou alguém que os apresentasse formalmente. Arranjou-o, claro. Casaram em Dezembro de 1940, um amor em tempo de guerra. Que resiste até hoje. Porque sem amor a vida não seria possível, farta-se de proclamar.
Gostaria de lhe perguntar se ainda tem muitos projectos na sua folha. Se o tempo lhe continua a parecer tão escasso como quando lhe falei pela última vez. «Por vezes, dá-me a sensação de que estou a perder tempo. Quero aproveitar o que me sobra nas melhores condições e contribuir para que não nos vejam como um número. A gente tem um nome e não quero deixar de ser eu. A sociedade do consumo é uma sociedade sem ética, quase desgovernada. As pessoas querem ter mais, querem fazer mais, querem consumir mais e tudo acabará inevitavelmente no desespero. Não sou um número».
O tempo é escasso. Eu sei, Manoel.”

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