Se nos lembrarmos. [À memória de Maria José Nogueira Pinto, um ano depois.]
A voz da verdade, 20120715
Guilherme d’Oliveira Martins
Se nos lembrarmos do que aconteceu na Europa nos anos trinta do século passado depressa descobrimos que então houve quem pensasse que o confinamento nas soluções nacionais constituiria uma saída. E chegou-se ao paradoxo de entender que uma suposta superioridade cultural legitimaria a violência e a dominação. Não é preciso explicar onde nos conduziu essa via. Quando a guerra geral destruiu o mundo ou quando o extermínio permitiu a morte de milhões de pessoas, pôde perceber-se que uma cultura de paz exige abertura e respeito mútuo bem como a perceção de que a dignidade universal das pessoas assenta na possibilidade de aceitar a imperfeição, a diversidade e o pluralismo. Hoje, porém, uma certa indiferença e um forte esquecimento determinam que se considere que a liberdade, a democracia e a paz são bens definitivamente adquiridos para o futuro. Assim também se pensou no início do século XX, julgando-se que a paz perpétua estava ao alcance da história contemporânea.
Ao falarmos de imperfeição e de diversidade há quem tema a emergência do relativismo ético. A abertura e o pluralismo põem na ordem do dia o respeito dos valores humanos, a começar na dignidade pessoal de todos. João XXIII e o Concílio Vaticano II insistiram especialmente neste «todos». Estamos a pôr os valores fundamentais não na categoria de abstrações, mas como realidades encarnadas nas pessoas concretas. A identidade é o que distingue e o que caracteriza. A história não é um absoluto, é uma relação complexa, de incertezas, de dúvidas e de desígnios. Generosidade e egoísmo, heroísmo e cobardia, sentimentos nobres e perversos – eis aquilo com que sempre nos confrontamos, num diálogo com a natureza e a sociedade. A identidade é tanto mais rica quanto melhor se tornar fator de enriquecimento na relação com os outros. Estamos diante de um processo sempre em evolução. E assim afastamo-nos das nossas origens e seremos mais fiéis a elas se as pudermos enriquecer. As fontes serão tanto mais fecundas e vivas quanto mais derem lugar ao caminho baseado na liberdade e na autonomia e à síntese entre a história e a vontade de emancipação e de justiça ou a capacidade para lidar com a incerteza. Uma identidade viva e aberta vai perdendo algo e ganhando muito, designadamente na dialética entre a hospitalidade e a hostilidade, assegurando que esta não ocupa o lugar daquela. Há, de facto, um movimento incessante de partida e de regresso. O nosso Eduardo Lourenço salienta-o com especial ênfase, pondo essa dualidade no centro da sua heterodoxia. Isso é, de facto, particularmente evidente na cultura portuguesa: baseada num melting-pot de muitas diferenças, de mil encontros e desencontros, da sede de aventura e de busca da incerteza, de contradições entre a crença e a desilusão, entre a vontade e a dúvida.
Hoje, falamos do projeto europeu. Houve quem julgasse ver aí uma saída prometedora para muitos dos bloqueamentos encontrados. Contudo, as nuvens negras acastelam-se no horizonte. Houve e há quem confunda esse projeto com a criação de uma superidentidade, que projete outras identidade particulares, mas também outras frustrações. As fronteiras são linhas de distinção e de aproximação. Verdadeiramente, não estamos a criar um superestado ou uma identidade de substituição, mas um projeto de paz, de equilíbrios e complementaridades. A identidade europeia não pode ser feita de certezas e de uma lógica de predomínio ou de decadência (já que os extremos se tocam). Como vemos nos dias que correm, coexistem sinais contraditórios: os egoísmos nacionais ligam-se à ideia de fortaleza europeia, com duas velocidades de ricos e pobres, de virtuosos e pecadores. Os riscos de conflito ou de guerra existem, se não houver paz nas ações e nos corações.
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