Traidores!
António Galamba
ionline, 20151105
Não há maior traição que a traição ao património do PS para a democracia portuguesa
As redes sociais e os espaços de comentários dos leitores na comunicação social nunca foram ruelas em que a liberdade de opinião lidasse bem com a diferença, com a realidade e com o usufruto de mínimos de senso. Amiúde a liberdade de expressão é confundida com o insulto, a verve destila um misto de cegueira, fel e adopção tardia de genes de lápis azul, e vai daí o ser humano transforma-se num animal feroz. Sem limites. A expectativa do poder pode galvanizar os apaniguados da tribo, acabrunhar alguns humores que afinal são de circunstância e transformar em gelatina a mais hirta das colunas vertebrais, mas nunca vergará quem não transacciona convicções por benesses do poder, quem não desvia a política de um exercício centrado nas pessoas e quem não abdica de actuar no quadro dos valores da democracia. Nenhum insulto ou ameaça mudará a minha opinião de que quem ganha uma eleição deve governar, quem perde vai para a oposição e uma súbita convergência de vontades à esquerda, com o sustento de uma bóia salva-vidas, é um erro político trágico para o futuro do Partido Socialista.
Traidores, dizem eles Entre os intervalos dos arremessos de impropérios próprios de gente tão destravada na língua como inconsequente na acção que transforma a sociedade, há quem se entretenha a rotular. Quem discorda é traidor, mesmo que tenham sido outros a quebrar as regras estabelecidas dentro e fora do PS. Quem critica é de direita, mesmo que tenham sido outros a celebrar acordos com essa direita nos últimos quatro anos, enquanto a maioria do PS travava um combate político então pouco apetecível. Quem questiona as opções da estratégia de fuga em frente depois da derrota da vitória anunciada não é socialista, é fascista e outros “istas” compagináveis com o agrado ao chefe, a orientação da propaganda vigente ou a performance sob a capa de uma personagem anónima e triste.
Traição aos valores da democracia A verdade é que os sintomas estavam aí. Militantes configurados para verem no PS uma mera plataforma de poder e dos poderes. Um partido fundador da democracia em que a maioria convive mal com a diferença, a alternativa e o pluralismo. É ver o nervosismo das listas alternativas nos congressos, a azia das opiniões diferentes e a candura da mudança de opinião após um SMS do chefe ou o aceno de uma oportunidade. Não há maior traição que esta ao património do contributo do PS para a tolerância, o pluralismo e a liberdade. Tal como na sociedade, há quem ache que o poder é um direito quase divino, para predestinados ou D. Sebastiões, que a liberdade de expressão é um exclusivo de alguns e as conquistas do 25 de Abril não podem ser generalizadas.
Traição à memória E depois há a traição à memória, à história do PS, ao que disseram no passado, ao que deixaram fazer no passado em seu nome e aos impulsos de uma liderança que assegurava a maioria absoluta e se ficou por uma minoria absoluta, alegadamente com convergências das esquerdas cimentadas com a exclusão da construção europeia, da união monetária e da NATO. Querem maior traição à memória que fingir que a construção europeia, desde 4 de Outubro de 2015, deixou de ter uma influência cada vez mais presente nas opções dos decisores políticos e na vida das pessoas? Querem maior traição que fingir que, num quadro em que quem ganhou as eleições vai para a oposição, haverá alguma convergência de vontades e voto nas matérias excluídas das estabulações à esquerda?
Traição ao futuro Quando o presente é preocupante aos democratas com convicções só resta darem um contributo para gerar esperança para o futuro. Sim, é traição ao futuro hipotecar o posicionamento do PS ao centro por uma deriva à esquerda alicerçada numa convergência plena de exclusões, contradições e riscos. Querem maior traição que uma convergência de acesso ao poder que não assegura uma reforma do sistema político, uma reforma da segurança social, uma definição do essencial das funções do Estado? Uma convergência avessa à mudança e ao reformismo que se contenta com a reversão e a manutenção das realidades?
Neste quadro, traição era não dizer o que penso.
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