Santo alentejano criou ordem premiada por luta contra o ébola

Luís Godinho DN 14 setembro 2015
Esforço da Ordem de São João de Deus na luta contra a doença em África valeu-lhe o Prémio Princesa das Astúrias.
Habituado a ver irmãos da Ordem Hospitaleira de São João de Deus em situações limite em vários países do mundo, nem por isso Vítor Lameira, superior provincial da Ordem em Portugal, estava preparado para a notícia da morte de cinco irmãos e 18 colaboradores na luta travada no ano passado contra a epidemia de ébola na Libéria e na Serra Leoa: "Foi uma situação trágica que nos apanhou desprevenidos." Os hospitais da ordem situados em Lunsar (Serra Leoa) e em Monróvia (Libéria) estiveram na linha da frente no combate à doença, permitindo salvar milhares de vidas. O esforço valeu-lhe a distinção com o Prémio Princesa das Astúrias, entregue no início deste mês em Oviedo. O que muitos não saberão é que o santo que esteve na origem da ordem nasceu no Alentejo, em Montemor-o-Novo.
Vítor Lameira recorda as notícias dos dias trágicos: "O diretor do hospital ficou infetado depois de entrar em contacto com alguns doentes e foi assistido por irmãos e colaboradores que ficaram igualmente contagiados. Não estávamos preparados para um surto de ébola tão repentino."
"A nossa missão é a de dar a vida em prol daqueles que necessitam", diz o superior provincial, sublinhando que essa dimensão assistencialista esteve na origem da fundação da ordem em 1593, em Granada (Espanha), apesar de São João de Deus ser um português nascido num dia e mês desconhecidos do ano de 1495. Apesar de ter havido alguma especulação e de alguns investigadores terem tentado usurpar a nacionalidade de São João de Deus para Espanha, está provado que ele nasceu em Montemor-o-Novo e que aí viveu até aos 8 anos de idade", conta o padre Aires Gameiro, 86 anos, um dos maiores especialistas sobre a vida e a obra deste santo português.
Filho de André Cidade e de Teresa Duarte, comerciantes de fruta, muito pouco se sabe sobre a sua infância passada no Alentejo. A nebulosa é ainda maior quando se tenta apurar as circunstâncias da sua ida, ainda criança, para Oropesa, na província espanhola de Toledo. "É um mistério. Terá sido raptado, levado às escondidas dos pais por um clérigo que se terá servido dele para induzir compaixão e conseguir esmolas", sugere Aires Gameiro. Acolhido na casa do maioral do conde de Oropesa, trabalhou como guardador de rebanhos até que o espírito aventureiro o levou a desejar a "glória militar" e a alistar-se por duas vezes no exército de Carlos V. Ambas correram mal. Na guerra contra os franceses caiu de uma égua e em 1532, quando os turcos ameaçavam invadir a Europa, partiu para Viena, mas o sultão desistiu de atacar a cidade.
Desanimado porque a vida militar não estava a correr-lhe bem, regressou a Portugal onde apenas encontrou um tio e, sem nada que o prendesse à terra, partiu para sul. Em Ceuta trabalhou nas muralhas da cidade para ajudar a família de um fidalgo português desterrado. Foi livreiro ambulante em Gibraltar, antes de se estabelecer em Granada. "Foi aí que ele, indo a um sermão do padre João de Ávila, levou um abalo grande e mudou de vida de uma maneira muito ruidosa, quase com uma crise emocional."
Dado como louco, acabou internado no Hospital Real de Granada "onde sofreu na pele os tratamentos dados na época a este tipo de pacientes". A experiência levá-lo-ia a fundar um pequeno hospital para o qual "começou a recolher" doentes miseráveis que encontrava pelas ruas. "É aqui que surge o São João de Deus da dignidade de todas as pessoas, o hospitaleiro, aquele que se dava aos pobres mesmo com incompreensões de gente da própria Igreja", sublinha o padre Aires Gameiro. À data da sua morte, em 1550, na sequência de um episódio trágico - contraiu uma broncopneumonia depois de se lançar ao rio na tentativa frustrada de salvar uma criança -, tinha deixado no pequeno hospital de Granada os alicerces das modernas instituições de saúde. "Foi o primeiro a centralizar a atenção na pessoa, naquele caso em concreto. Passou a dar a cada doente uma esteira e a separá-los por enfermarias e por tipologia de doenças", exemplifica Vítor Lameira. A partir de um grupo de voluntários que trabalhavam no hospital, e que se tratavam entre si por irmãos, a Ordem Hospitaleira foi estruturada e reconhecida pelo Vaticano em 1571.

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