Nulidades expresso?!
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Observador26/9/2015, 0:05
Com esta reforma, Francisco não facilita as nulidades matrimoniais, mas pretende pôr termo às listas de espera e à morosidade dos tribunais eclesiásticos, por vezes desesperantes.
Depois da lei do divórcio expresso, de Sócrates, parece que vêm aí as nulidades expresso, de Francisco. Com efeito, no passado dia 8 de Setembro, o Papa publicou, por motu próprio, duas instruções, Mitis Iudex Dominus Iesus e Mites et Misericors Iesus, que reformam o processo canónico de declaração de nulidade matrimonial na Igreja católica latina e oriental, respectivamente, e que entrarão em vigor no próximo 8 de Dezembro, dia em que, para além de se festejar a Imaculada Conceição da Virgem Maria, se iniciará o Ano da Misericórdia. Quem tenha lido esta notícia na imprensa generalista pode ter ficado com a ideia de que, a partir dessa data, existirá, finalmente, um procedimento expedito para a rescisão do contrato nupcial, ou seja, uma espécie de divórcio católico.
São aparências que iludem. O divórcio é o acto pelo qual um casamento civilmente válido é revogado mas, em caso algum, a Igreja católica permite que um matrimónio canónico validamente celebrado e consumado seja anulado. Aliás, segundo a doutrina comum de teólogos e canonistas, nem sequer o Papa tem poder para o fazer, embora possa dispensar do compromisso matrimonial os cônjuges que celebraram validamente o seu casamento, desde que não tenha havido união conjugal. Era, aliás, uma prática corrente entre os membros das famílias reais, quando casavam muito antes da idade núbil. Por isso, quando esta chegava e os cônjuges, por razões de Estado ou de ordem pessoal, não chegavam a coabitar, entendia-se que o casamento era passível de dispensa papal. O mesmo ocorria também, por vezes, nos casamentos por procuração.
Se nem o Papa pode permitir o divórcio, para que servem então os tribunais eclesiásticos? Para apurar se um determinado casamento celebrado canonicamente é verdadeiro, ou seja, juridicamente válido. Se o for, haja ou não geração, não há quem o possa anular: não o pode fazer a Igreja, nem o pode fazer o Estado. Mas, se o não for, haja ou não geração, não se pode exigir aos fiéis em causa, nem se lhes pode permitir, que vivam como se fossem casados quando, na realidade, não o são. A nulidade decorre sempre da ausência, ou insuficiência, de algum requisito essencial, como acontece nos casos de incapacidade psíquica ou imaturidade dos nubentes, simulação, impotência, exclusão da fidelidade, da prole ou da sacramentalidade, falta de liberdade, medo ou erro por parte de algum dos contraentes, crime, rapto, etc. Nestes casos e demais impedimentos, o matrimónio, embora celebrado e consumado, na realidade não existiu por razão desse defeito substancial. É por isso que, em rigor, a Igreja nunca anula um casamento, em cujo caso admitiria que teria sido validamente celebrado, apenas declara a nulidade de um matrimónio que nunca existiu, não obstante a aparência formal, a vida comum e, até, a geração.
Ora acontece, com demasiada frequência, que os tribunais diocesanos, por escassez de recursos humanos, não logram resolver as causas matrimoniais em tempo útil. Por vezes, como se afirmou na sala de imprensa do Vaticano, por ocasião da apresentação desta reforma, o processo de declaração de nulidade chegava a durar dez anos. Depois da formulação do pedido, da admissão do pedido, da constituição do tribunal e da respectiva instrução, seguia-se a primeira sentença, que ainda não era definitiva porque, até à data, exigia-se, para todos os casos, o recurso a uma segunda instância. Só após duas sentenças concordantes da nulidade ficaria, para todos os efeitos, canónicos e civis, declarado nulo o matrimónio impugnado. Com a nova legislação, o processo poderá concluir-se com uma só sentença, abreviando-se assim a sua tramitação que, se for afirmativa da nulidade, permitirá que as partes depois contraiam, de imediato, um verdadeiro casamento.
Outra dificuldade recorrente era a das custas judiciais que, mesmo sendo modestas, podiam orçar um montante proibitivo para alguns fiéis. Embora a ninguém se negasse o direito de recorrer aos tribunais eclesiásticos por manifesta incapacidade de custear o respectivo processo, foi em boa hora que o Santo Padre instruiu as dioceses no sentido de administrarem a justiça de forma célere e gratuita.
Fazer depressa e bem, há pouco quem, como diz o provérbio. É verdade que, ao imprimir mais velocidade à tramitação das decisões judiciais, corre-se o risco de uma depreciação qualitativa da justiça eclesial, como advertiram alguns canonistas. Mas não é menos certo que, como ensina a parábola do juiz iníquo, a morosidade judicial é sempre uma injustiça que, sobretudo, penaliza os mais pobres e necessitados.
Com estes dois motu proprio, Francisco não facilita as nulidades matrimoniais, mas pretende pôr termo às listas de espera e à morosidade dos tribunais eclesiásticos, por vezes desesperantes. Ao facilitar o acesso à justiça eclesial dos mais desfavorecidos, o Papa acolhe, na prática, o apelo que lhe foi feito por um cardeal no momento da sua eleição como sucessor de Pedro – “não se esqueça dos pobres!” – e que o levou a optar por um nome até então inédito entre os bispos de Roma: o do poverello de Assis.
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