O regresso da "Mãe de todos os Parlamentos"
Devíamos prolongar a pausa estival para reflectir sobre as tremendas lições políticas dos últimos quatro dias
Quantos parlamentos nacionais teriam sido capazes de derrotar uma proposta tão séria como a de intervenção militar apresentada por um governo com confortável maioria parlamentar? Quantos primeiros-ministros teriam tido a humildade de submeter ao Parlamento uma proposta desse tipo, quando não eram a isso constitucionalmente obrigados? Estas são algumas das perguntas cruciais que devemos fazer a propósito da honrosa, mas surpreendente, derrota do primeiro-ministro britânico perante "a Mãe de todos os Parlamentos", na quinta-feira passada.
O Presidente Obama imediatamente percebeu que essas eram as perguntas a fazer a si próprio. E respondeu-lhes acertadamente: anunciou no sábado que mantinha a sua intenção de punir o vergonhoso recurso a armas químicas na Síria, mas que, antes disso, também sem ser constitucionalmente obrigado, submeteria a sua decisão ao Congresso americano.
Neste início da rentrée política, devíamos todos prolongar a pausa estival para reflectir sobre as tremendas lições políticas destes últimos quatro dias. Não é muito importante saber se concordamos ou não com a decisão do Parlamento britânico. O que é importante é observar o exercício do princípio da soberania do Parlamento - um princípio ancestral no Reino Unido que gradualmente foi adoptado, pelo menos nominalmente, nas democracias mais jovens (isto é, todas as outras). Na quinta-feira, o princípio da soberania do Parlamento foi exercido na sua versão mais exigente: 30 deputados conservadores e nove liberais-democratas votaram contra a proposta do seu próprio Governo; 31 deputados conservadores, entre os quais dez membros "júniores" do próprio Governo, não votaram. A moção de David Cameron foi derrotada por 13 votos.
Esta derrota não foi primariamente uma vitória do Partido Trabalhista, na oposição. Ao longo das oito horas de debate parlamentar, as controvérsias mais significativas, embora sempre corteses, ocorreram dentro da bancada conservadora. Inúmeros deputados da maioria interpelaram directamente o primeiro-ministro. Este optou voluntariamente por aceitar todas as perguntas e a todas tentar responder. No final do debate, foi visível que não conseguiu persuadir a maioria. Muitos dos deputados dissidentes iniciavam as suas intervenções dizendo: "Os meus eleitores querem saber..." Vários repetiram que a sua lealdade última era devida à sua própria consciência e aos seus eleitores. Não são meras figuras de retórica. Eleitos em círculos uninominais por maioria simples, os deputados britânicos sabem que têm dois "mestres": a direcção do seu partido e os seus eleitores. Não dependem exclusivamente, ou imediatamente, de um nem de outro. Nessa tensão reside a esfera de liberdade da sua consciência.
Em contrapartida, os eleitores de cada círculo sabem quem é o seu deputado. A ele pedem contas, não a uma vaga lista de desconhecidos decidida por cúpulas partidárias. Este sistema, incompreensível para muitos observadores continentais e repetidamente defendido no passado por Winston Churchill e Karl Popper, constitui um ingrediente crucial da resiliência do sistema parlamentar britânico. Este sistema não garante, nem pretende garantir, que cada decisão parlamentar será acertada. Nenhum artefacto gerado pela acção humana, necessariamente falível, pode ser infalível. Mas a soberania de um Parlamento que presta contas aos eleitores oferece uma garantia mais humilde, talvez por isso mais importante: que uma nação pode governar-se a si própria em permanente conversação consigo própria, em permanente processo de autocorrecção. Nenhum déspota esclarecido, nenhum comité de especialistas, nenhum proclamado propósito indiscutível, nenhuma fórmula científica poderão sobrepor-se à vontade da nação expressa tentativamente, e falivelmente, através do Parlamento. Karl Popper, um anglófilo de origem austríaca, repetiu-me à exaustão que Winston Churchill foi durante a II Guerra o único primeiro-ministro que a qualquer momento podia ter sido demitido pelo Parlamento - e, pelo menos por duas vezes, receou poder sê-lo. Em 1990, a primeira-ministra Margaret Thatcther foi apeada pelos deputados da sua bancada conservadora, após três vitórias eleitorais sucessivas. Em 1782, por 19 votos, o Parlamento britânico derrotou a proposta do rei Jorge III e do primeiro-ministro, Lord North, para continuação da guerra contra a jovem República americana. Acima de tudo, o Parlamento britânico assegurou que, desde 1688, o país tenha sido capaz de fazer todas as revoluções da época moderna - tecnológica, económica, social, cultural e tantas outras - sem nunca recorrer à Revolução ou à guerra civil. Para os cultores de sistemas de perfeição e os idólatras das virtudes heróicas, talvez este seja um feito menor. Para os amantes da liberdade e da evolução gradual, todavia, este é um dos feitos maiores da falível arte política.
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