Sobre os excelentes resultados das eleições autárquicas
O leitor já conhece os resultados das eleições autárquicas de ontem: eu, quando escrevo este artigo, ainda não. Já houve ontem na televisão dezenas de comentadores, analistas e líderes partidários interpretando os resultados. Uns terão dito que põem em causa o Governo. Outros, que não. Outros descobrirão sinais nas votações em listas independentes. Eu não sei nada disso. Mas acho que os resultados foram seguramente excelentes: porque os eleitores votaram livremente, porque as candidaturas foram livres, porque houve respeito mútuo e não houve violência.
Andamos todos bastante irritados uns com os outros. Uns porque o Governo impõe austeridade. Outros porque a oposição é irresponsável e despesista. Uns ficam escandalizados com as decisões do Tribunal Constitucional. Outros ficam entusiasmados com essas mesmas decisões. Uns e outros acusam-se mutuamente de estarem a conduzir o país para o abismo.
Devemos dar graças a Deus, e à nossa democracia, por todos podermos trocar essas acusações mútuas. Somos um povo livre e pacífico que atravessa dificuldades. Mas convém colocá-las em perspectiva - uma perspectiva que tenha em conta as reais tragédias que vão por esse mundo fora, como na Síria, ou no Egipto, ou em tantas outras paragens onde o primado da lei é ignorado por fanatismos rivais.
Na passada quarta-feira, em plena campanha eleitoral, foi lançado em Lisboa um livro que ajuda a colocar as coisas em perspectiva. Chama-se Holodomor: A Desconhecida Tragédia Ucraniana (1932-33). Coordenado por José Eduardo Franco e Béata Cieszynska, com prefácio de Guilherme d"Oliveira Martins, a obra reúne contributos de vários autores sobre a grande fome que Staline impôs à Ucrânia em 1932-33 - e que provocou cerca de seis milhões de mortos. Foi uma tragédia inimaginável. Carlos Gaspar aponta certeiramente neste livro a origem dessa tragédia no fanatismo ideológico - eu acrescentaria ateu, anti-sentimento nacional e pretensamente científico - do estalinismo.
A partir de 1929, recorda Carlos Gaspar, Staline inicia a chamada "Segunda Revolução Soviética", apostada na "estatização da indústria, a colectivização da agricultura e a sovietização da cultura". Em Janeiro de 1930, (...) as brigadas da "Cheka", do Komsomol e do Partido Comunista - ou os célebres "vinte e cinco mil" - começaram a atacar as aldeias e vilas rurais, nomeadamente da Ucrânia ( considerada particularmente nacionalista), para separar os camponeses ricos dos médios e dos pobres, expropriar as propriedades e os meios de produção privados, fechar as igrejas e forçar as pessoas a integrar as comunas agrícolas" (p. 42).
Perante a resistência dos camponeses ucranianos, "a ofensiva final, em 1932, foi implacável. (...) A expropriação dos cereais e dos meios de produção provocou a terrível fome de 1932-33 - entre seis e onze milhões de mortos, um dos maiores massacres de civis do século XX" (p. 43).
Na verdade, sabemos hoje que o império soviético rivalizou com o império nazi na vergonhosa competição em massacrar grupos nacionais ou religiosos inocentes, em particular os judeus. Perante essas tragédias, nós deveríamos ficar muito orgulhosos por possuirmos simples "democracias burguesas nacionais".
Nestas democracias burguesas nacionais, não reconhecemos autoridade absoluta a ninguém. Todos estamos abaixo, e ninguém acima, da lei. Todo o poder é limitado, mesmo o da maioria, susceptível de crítica, e periodicamente submetido a sufrágio.
Não queremos religiões de Estado, nem sociedades civis dirigidas pelo Estado, nem doutrinas científicas oficiais. Chamamos a isto pluralismo. E, inspirados nas grandes tradições ocidentais de Atenas e do cristianismo, orgulhamos-nos desse pluralismo, sob o qual proclamamos a inviolabilidade da consciência pessoal.
Tudo isto produz, para grande estupefacção de culturas monistas e em regra imperiais, uma boa dose de desarrumação. Uns pregam isto, outros pregam aquilo. Os nossos políticos são alvo de constantes acusações. E eles próprios trocam acusações mútuas, sobretudo entre partidos rivais. Isso mesmo estará hoje a acontecer, no rescaldo das eleições autárquicas de ontem.
Repito que devemos encarar toda esta desarrumação como uma virtude, não como um defeito. Esta desarrumação ordeira decorre do nosso respeito pelo primado da lei e pela democracia. Convém ainda não esquecer que esta desarrumação ordeira é possível porque ocorre no interior de um forte sentimento de identidade nacional. Somos cidadãos do mundo, certamente, e cidadãos europeus, seguramente, mas somos basicamente portugueses, representados num Parlamento nacional. É basicamente isso que nos permite com desportivismo trocar acusações mútuas pacificamente, ganhar eleições hoje e perdê-las amanhã. É por isso que são excelentes os resultados das eleições de ontem - quaisquer que tenham realmente sido.
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