Os desvarios populistas de uma campanha autárquica
Será que todos os políticos perdem a cabeça em campanha e acham que tudo o que dizem será esquecido no dia a seguir às eleições?
Há sensivelmente um ano desafiaram-me para uma candidatura autárquica. Por razões pessoais e por não ter ideias concretas para a autarquia em causa, não aceitei esse desafio. Mas fiquei a pensar nele. Fiquei sobretudo a pensar naquilo que, nos tempos que correm, poderia e deveria ser a plataforma de um candidato autárquico. O contraste com o que tenho visto na actual campanha eleitoral não podia ser mais marcante.
Sem falar dos problemas concretos de nenhum concelho ou freguesia, julgo não errar muito se disser que, de uma forma geral, o tempo da construção das infra-estruturas básicas está, no essencial, terminado. O das grandes obras também pertence, ou devia pertencer, ao passado. O que o país precisa - o território, as cidades - é de ser melhor arrumado, de se lhe corrigirem defeitos de projecto, de se emendarem alguns excessos e de, criteriosamente, optimizar o que já foi construído ou vai com a obra a meio. Num país com carga fiscal tão elevada, a diminuição dos impostos locais devia ser uma prioridade. Para isso seria sempre necessário reestruturar serviços e repensar funções, focando as autarquias no essencial e enxotando as muitas clientelas que gravitam na sua órbita. Só assim se poderia reduzir custos e tornar menos pesada a factura a pagar pelos cidadãos, em impostos, taxas e derramas.
Ao mesmo tempo parecia-me essencial que se repensasse a relação do poder local com os cidadãos. Por um lado, descomplicando a sua vida, diminuindo a burocracia e acabando com muitos "vistos" que atrasam o licenciamento, tornam as estruturas mais pesadas e são sempre um foco de corrupção - sobretudo da pequena corrupção, aquela com que não haverá nenhum cidadão que não tenha tido de enfrentar. Por outro lado, encontrando novas formas de colaboração com a sociedade civil, sobretudo nas áreas sociais, de forma a conseguir dar um apoio mais justo, mais humano e mais próximo aos que mais necessitam.
Ou seja, não me pareceu que este fosse tempo de grandes promessas. Nenhum candidato a autarca pode razoavelmente pensar que vai poder trabalhar com orçamentos mais generosos do que aqueles que tem hoje. Pelo contrário. A não ser que queiram endividar os seus municípios ou as suas juntas de freguesia.
Apesar do meio blackout provocado pela intervenção pouco sensata, para não dizer totalmente disparatada, da Comissão Nacional de Eleições, o que todos os dias se vai conhecendo sobre as propostas dos milhares de candidatos que andam de porta a porta a tentar cativar os eleitores é de deixar os cabelos em pé. Sem se perceber bem como, há candidatos a proporem vacinas gratuitas, livros escolares gratuitos, obras faraónicas e milagres de multiplicação dos pães. Um exemplo deste desvario que me chocou especialmente foi a proposta do candidato do PSD/CDS a Lisboa de construir um novo túnel no centro da cidade, uma obra cuja lógica não só me escapa em absoluto (e trabalhei muitos anos na zona que seria supostamente "beneficiada"), como não faço a mais pequena ideia como seria financiada.
Mas se aquilo que prometem os candidatos locais ainda pode ir por conta do voluntarismo de cidadãos que querem servir as suas comunidades e da euforia mais desculpável numa campanha eleitoral, o mesmo não pode ser dito daquilo que os líderes nacionais, ou pelo menos alguns deles, têm andado a proclamar por feiras, arruadas e jantares de carne assada. De repente parece que não vivemos num país falido, num país que não consegue financiar-se autonomamente e que vive ligado à máquina dos euros da troika - e que por isso tem de obedecer a essa mesma troika.
Não sei se foi o muito calor de Agosto que pôs a ferver algumas moleirinhas, mas a forma como entrámos em Setembro a discutir as décimas do défice do próximo ano, omitindo sempre que mais défice será sempre mais dívida, foi mais própria de um país do Terceiro Mundo. Não espantaria que os adversários da troika, o PCP e o BE, o fizessem. Já espanta que o CDS, uma parte do PSD e um entusiasmado PS o tivessem feito com poses que não andaram muito longe das regateiras. A "nacionalização" mediática das campanhas locais não ajudou nada, mas o que faltou mesmo foi sentido das proporções e da realidade.
Há responsabilidades diferenciadas neste desnorte, mas não deixa de ser significativo que se comecem a ouvir vozes a recomendar que se espere por segunda-feira para voltar a ter conversas sérias sobre o Orçamento de 2014 e os compromissos futuros da República. É uma constatação perturbante, pois parte do princípio de que, até domingo, vale tudo para enganar os eleitores, e que só passado o voto se voltará a falar verdade. Se é esta a ideia que as nossas elites, a começar pelas elites partidárias, têm de democracia, então estamos conversados.
A feira portuguesa destas semanas está a ter consequências. Ela acrescentou-se aos sinais políticos negativos que, desde Julho, Portugal está a enviar para o exterior. Há ainda no nosso país a ilusão de que se pode fazer um discurso cá dentro e outro lá fora, num jogo de esconde-esconde em que Sócrates era excelso e que muito contribuiu para a descredibilização externa de Portugal. O que se passa cá dentro é hoje analisado à lupa por quem nos empresta dinheiro - a troika e, claro, os famosos "mercados". E se a troika vai repetindo os recados de que devemos manter o esforço de consolidação orçamental (esta semana foi Mário Draghi, o presidente do Banco Central Europeu, que o disse com toda a clareza), os mercados não têm deixado de falar como eles sabem, isto é, subindo os juros da dívida.
Noutras condições estaríamos a começar a respirar de alívio pelos sinais positivos vindos da economia, todos eles a mostrar que o sector privado e as famílias estão a fazer aquilo que o Estado continua sem fazer, isto é, a mudar de vida e a reencontrar um novo fôlego. Mas não. Lá de fora olha-se para nós e desconfia-se. Quem quiser perceber porquê que leia o artigo que Simon Nixon, o editor para os assuntos europeus do Wall Street Journal (o jornal por excelência dos "mercados"), assinou esta semana com o significativo título de "Portugal pode estar a incubar uma tempestade". O tema do artigo é a bizarra discussão pública sobre os 4,0 ou 4,5 por cento de défice, mas a origem das dúvidas sobre Portugal é claramente identificada. Primeiro que tudo, a crise política de Julho e o papel de Paulo Portas nela. Depois as decisões do Tribunal Constitucional que bloqueiam a diminuição da despesa pública. Por fim a "oposição populista" do PS a "medidas que sabe que terá de adoptar quando chegar ao Governo".
A dúvida do Wall Street Journal é a que já aqui exprimi: a de saber se a elite portuguesa está à altura dos desafios que a actual situação coloca. A diferença é que, para mim, é cada vez mais claro que não está. É a elite, é oestablishment, que não quer mudar, que continua a agir como se não vivêssemos a crise que vivemos. Andar nestes dias pelas ruas do país inundadas de cartazes, ouvir as promessas das autárquicas, mostra-nos como tanta gente não aprendeu nada.
No meio disto tudo o que a economia privada está a conseguir fazer é mesmo um milagre.
P.S.: O Tribunal Constitucional constitucionalizou ontem a velha máxima de que "a antiguidade é um posto". A irracionalidade chegou a tal ponto que eu, que tenho defendido que o problema é mais a interpretação da Constituição do que a sua letra, começo a achar que a Constituição é mesmo um obstáculo inamovível no caminho das mais ténues reformas.
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