A lei fundamental

ALBERTO GONÇALVES
2013-09-08
Comecemos por acreditar que o Governo quer mesmo encolher o Estado e que os senhores juízes do Tribunal Constitucional se limitam a interpretar objectivamente a Constituição. Então é oficial: a Constituição não permite que o Estado encolha. Escusado tentar cortar aqui ou ali. Salvo beliscadelas apenas observáveis ao microscópio, não se consegue reduzir a quantidade de funcionários públicos nem os respectivos ganhos a ponto de transformar uma máquina imensa e inviável numa estrutura funcional e suportável. É assim. É proibido. É - todos em coro, agora - a lei fundamental.
Podia ser pior. A Constituição podia afirmar exp licitamente, ou sugerir à leitura dos senhores juízes do TC, a obrigatoriedade de cada repartição municipal empregar um mínimo de seis mil criaturas. Ou a impossibilidade de os assalariados dos transportes públicos receberem menos de 32 meses por ano. Ou a necessidade de cada conservatória do registo civil possuir cinco girafas nas traseiras. Por sorte, os iluminados que nos gloriosos tempos posteriores à revolução de 1974 redigiram o documento venerado por Jerónimo de Sousa foram suficientemente vagos para que o pessoal das câmaras municipais ainda caiba dentro delas e um inspector-chefe de tracção na CP aufira só 52 mil euros anuais. E dispensaram as girafas.
Em suma, eis a Constituição que nos calhou e a qual, conforme avisam centenas de comentadores orgulhosos, temos de respeitar. Infelizmente, a questão não é essa. Sobretudo se afirmado pelos seus beneficiários e entusiastas, o carácter imperativo da Constituição é tão relevante quanto um pirómano jurar que não passa sem provocar uma labaredazinha semanal. Logo que o enfiem na cadeia, passa, sim senhor. Exigir que vivamos de acordo com atoardas rabiscadas num papel é fácil. E é fácil também perceber se somos capazes de o fazer: não somos.
Do alto da sua sensatez, as Sagradas Escrituras permitiram que, ao longo de décadas, às vezes devagarinho, outras vezes a uma velocidade propícia a náuseas, erguêssemos a extraordinária situação em que hoje nos encontramos. Respeitar a Constituição representa, afinal, entrar em bancarrota, processo que somente as esmolas da "Europa" tornaram demorado. Quando o contribuinte alemão reduziu a tolerância devotada a mendigos estroinas, compreendemos que viver segundo a Constituição leva à morte certa. Ou não compreendemos? Obviamente, nem por isso. Em qualquer dos casos, a discussão é académica.
Ao contrário do Governo, os factos preocupam-se pouquíssimo com os senhores juízes do TC e já começaram a impor uma ordem assaz inconstitucional. Uma ordem brusca, nada simpática e, até certa altura, evitável, mas que a prazo e à força reduzirá o Estado às dimensões adequadas, nos dias que correm muito inferiores às alegadamente pretendidas pelo Governo e às desejadas pelo bom senso. A realidade é a verdadeira lei fundamental.

Comentários

Francisco Melo disse…
Uma Constituição não pode estar acima do interesse nacional - acima da realidade como diz o senhor -, mesmo porque uma Constituição até pode maliciosamente ficar cativa de uma ideologia, de modo que não defenda mais o bom senso - o interesse nacional -, mas alguma ideologia. Quando isso acontece, não há democracia, já que os partidos podem ganhar eleições, mas não podem pôr em práctica a sua ideologia. Em torno de toda essa guerra absurda se revela que há quem goste de falar de democracia, mas não gosta nada dela. Quando uma Constituição é endeusada, tornada um ídolo, temos o fundamentalismo legalista, que não admite outra interpretação, e é natural que haja comportamentos em prol da deusa que não passam de fanatismo (o fundamentalismo leva a comportamentos fanáticos). Se eu sou obrigado a cumprir uma lei justa - diante de DEUS (ELE me obriga) -, não é porque a lei (não passa de uma coisa) esteja acima de mim, mas porque tenho o dever de respeitar as normas da boa convivência com os outros, razão das leis civis (a obrigação vem do meu dever de respeitar os outros, quando a lei é justa (de acordo com a justiça)). Não temos que servir à lei, era o que mais faltava, mas a lei é que tem que estar ao serviço da sociedade, o contrário do que se diz (de asneira).

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