O grande fiasco, ou como a América de Obama desistiu do mundo

Público, 13/09/2013
Os que não gostavam de um Mundo onde a América intervinha com frequência, vão ver agora se gostam de um mundo de onde ela está ausente
Aqui há uns tempos, um amigo meu, pessoa habitualmente perspicaz a analisar a política internacional, disse-me que aquilo que mais o preocupava era o facto de termos de conviver com um Presidente americano que não gostava da América. Quase dei um salto na cadeira. Apesar de não integrar a legião de fãs do Messias-na-Casa-Branca, o diagnóstico desconcertou-me. Mais de um ano passado sobre essa conversa, e depois de assistir à forma como Obama lidou com a crise na Síria, sou levado a crer que esse meu amigo tinha e tem razão. É difícil imaginar uma forma mais desastrada de prejudicar a posição dos Estados Unidos no Mundo e, ao mesmo tempo, de comprometer ainda mais a ideia de que existe uma ordem internacional que não tolera crimes contra a Humanidade.
Devo dizer que, quando Obama anunciou a intenção de atacar a Síria, comecei por não perceber quais os objectivos da acção militar. Ainda hoje não percebo e julgo que nisso até sou acompanhado por muitos dos mais altos responsáveis da Administração norte-americana. Numa recente audição no Congresso, o general Martin Dempsey, chefe máximo das Forças Armadas dos Estados Unidos, limitou-se a dizer que não tinha resposta para um senador quando este lhe perguntou o que se pretendia com a acção militar. O próprio Presidente limitou-se a esclarecer que esta não seria mais do que "a shot across the bow", uma expressão utilizada na Marinha para os tiros de aviso disparados para a água quando se pretende que um navio inimigo inverta a sua marcha. O problema é que, na Marinha, quando esse navio ignora o aviso, o tiro seguinte é para afundá-lo, e, no caso da Síria, o Presidente apressou-se a dizer que não haveria tiro seguinte. Quanto à dimensão da acção militar, fontes da Administração disseram (ao Los Angeles Times) que ela seria suficientemente enérgica para que aliados e adversários não se ficassem a rir dos Estados Unidos, o que não deixa de ser um objectivo político-militar desconcertante.
O que é que levou o pacifista-in-chief a querer meter-se nesta espécie de guerra do Solnado do tempo dos mísseis Tomahawk? Um indiscutível crime de guerra: o massacre de cerca de 1200 civis nos arredores de Damasco com utilização de armas químicas. Num país onde já morreram mais de 100 mil pessoas, muitas delas vítimas de acções indiscriminadas conduzidas pelo exército de Assad, numa zona de guerra onde o número de refugiados já anda pelos milhões, essa seria a gota de água que teria feito transbordar o copo de paciência americana. Por mim, nada a opor. Mais valeria tarde do que nunca. Mesmo considerando algo cínico que se diga aos tiranos deste mundo que podem massacrar os seus povos mais ou menos à vontade desde que não utilizem armas químicas, ao menos que se dissesse com clareza que não podiam mesmo utilizar armar químicas. Um simples "shot across the bow" pareceu-me sempre pouco para conseguir esse efeito, o que nos leva à indefinição estratégica dos Estados Unidos.
O que se passa é que Obama quer dar uma lição a Assad mas não quer derrubar Assad. Obama foi forçado por alguns senadores a dizer que pretendia alterar a relação de forças no terreno, favorecendo os adversários de Assad na guerra civil síria, mas não se sabe se é isso que realmente deseja, pois anunciou há meses que iria entregar armas à oposição não-fundamentalista e ainda não lhe fez chegar uma só espingarda. Quando a crise começou, Obama anunciou solenemente que "Assad tem de partir", acreditando ingenuamente que as suas palavras tinham em Damasco o efeito que têm em Washington, e, por isso, nada mais fez para afastar o ditador sírio. Por fim, Obama também sabe que, se forçar o derrube de Assad, pode abrir caminho a uma oposição onde os seguidores da Al-Qaeda se arriscam a ser os mais poderosos.
Como se todo este nevoeiro estratégico não fosse suficiente, o Presidente norte-americano acrescentou-lhe hesitações e ziguezagues. Primeiro, fez constar que actuaria sem pedir autorização ao Congresso; depois, confrontado com o fracasso do aliado Cameron na Câmara dos Comuns, anunciou que iria pedir aprovação prévia. Mas sem urgência. Porque com urgência perderia seguramente a votação. E talvez também a perdesse mesmo fazendo lobbydurante semanas junto dos congressistas. No entretanto, a Casa Branca foi deixando escapar para os jornais a lista dos possíveis alvos, numa tentativa de mostrar que o ataque seria coisa séria, um comportamento que estava a permitir à Síria preparar-se calmamente para qualquer eventualidade. Dando razão ao meu amigo, o Presidente parecia comportar-se de forma a ajudar os inimigos da América e a deixar sem norte os seus amigos.
Terça-feira passada, esperava-se que fosse o dia do tudo ou nada. Obama iria falar à nação e tentar, através da retórica, virar a seu favor uma opinião pública hostil e um Congresso ainda mais hostil. As possibilidades de sucesso eram mínimas. O cenário de uma humilhação suprema, com o Congresso a negar-lhe autorização para intervir na Síria e ele a ter de intervir na mesma, como dissera que faria, podia destruir o que sobra dos seus dois mandatos como Presidente. Foi então que Putin o salvou. Mas também humilhou. Primeiro, ao afirmar-se como o verdadeiro mestre no complexo xadrez do Médio Oriente, movendo as peças certas no momento certo. Depois, ao escrever um artigo para o New York Times de ontem, artigo onde o autocrata que fez da nascente democracia russa uma caricatura grotesca se permite dar lições de moral e de bons costumes.
"Fiasco" foi o termo mais gentil que a generalidade dos comentadores norte-americanos encontrou para descrever a forma como o desejo da Administração Obama de "dar uma lição" a Assad acabou nas mãos do homem que, nos últimos tempos, foi o principal aliado de Assad e o seu infalível apoio nas reuniões do Conselho de Segurança, Vladimir Putin. O diagnóstico do Wall Street Journal foi por isso severo: "Um Presidente fraco e inconstante acabou por ser forçado pelos inimigos da América a defender [no discurso de terça-feira] que a derrota da sua política na Síria tinha sido afinal uma vitória".
Desde o início desta crise que havia um lado de "agarrem-me, senão eu mato-o" na retórica obamiana, mas a forma como tudo se desenvolveu não revela apenas a insustentável leveza de um Presidente demasiado confiante no poder mágico das suas palavras. É também um reflexo de uma nova recaída isolacionista de uma América que, tal como sucedeu a seguir ao idealismo wilsoniano pós-I Guerra Mundial, está cansada de guerras longínquas e preocupada com as suas próprias dores internas. Mas uma recaída isolacionista mais grave, porque ancorada em traumas recentes - especialmente o do Iraque - e em medos emergentes - sobretudo o de que o tempo de ascensão e de hegemonia mundial está a acabar.
Obama defendeu, mas com notória falta de convicção, que alguém tem de se preocupar com a imposição de mínimos de decência e civilidade nas relações internacionais, razão por que crimes como os de Assad ou qualquer utilização de armas químicas não podem deixar de ser punidos. Mas se ele próprio poucas vezes deu sinal de querer desempenhar esse papel, a opinião pública americana nem quer ouvir falar de suportar esse fardo. A crise da Síria não nos revelou apenas as hesitações de um Presidente, tornou muito evidente a crescente impotência de uma grande nação a querer regressar aos limites da sua concha. Haverá quem festeje tudo isso. Eu, por mim, só posso repetir o que ainda ontem Timothy Garton Ash escrevia no The Guardian: "Se não gostavam do velho mundo onde os Estados Unidos intervinham com regularidade, vejam agora se gostam mais do novo mundo onde eles já não o intervêm".

Comentários

José Maia disse…
Não sei o que é pior, se o "Czar" se o oportunismo interesseiro protestante e louro*. Mas acredito que o segundo seja pior. Porquê dizer mal de Putin quando a América igualmente apoiou e deixou de apoiar ditaduras sempre que achou conveniente?

*A expressão não é minha
Rafael Almeida disse…
Grande texto, resume o fraco e indeciso Presidente Obama. Mostra como a América já não desempenha papel de protagonista no mundo, que hoje, é da Rússia. Os EUA temem tanto a Rússia quanto a China. Se ambos apoiam o massacre de mais de cem mil pessoas, o fraco Obama abaixa cabeça e finge que não está vendo e inventa mil e uma barreiras para o ataque. Não sou belicista, mas Assad passou dos limites e merecia ser punido. A América não é mais a toda poderosa salvadora do mundo. Melhor Hollywood rever seu conceito da grande nação e de seus "super heróis" que libertam povos oprimidos. A hegemonia Americana parece estar chegando ao fim. Espero que isso mude, e que o hesitante Obama possa tomar medidas mais firmes contra o sanguinário Assad, que por sinal vem sendo igual ou pior a Saddam e Khadafi. Saudades de Roosevelt. Abraços José Manuel Fernandes! Muito bom o texto!

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