A praga do empreendedorismo
Carla Hilário Quevedo
Portugal adormeceu no que diz respeito à iniciativa privada. As consequências são nefastas e estão bem à vista
Nesta crise mais recente surgiu a ideia desesperada de que o país se salva com uma boa dose de empreendedorismo. Seguindo esta ideia frívola como um episódio de "Gossip Girl", apareceu uma espécie de guru dos empreendedores, um jovem com idade entre os 35 e os 40 anos, chamado Miguel Gonçalves, que resolvia o problema do desemprego jovem com a venda de pipocas no cinema. Só é pena o número de espectadores de filmes estar cada vez mais reduzido e não haver compradores suficientes para suportar tantos vendedores de pipocas.
Mas não deitemos fora o bebé com a água do banho. O bebé, neste caso, é a capacidade que cada um tem de fazer por si e pela sua vida. A capacidade de viver honestamente, de lutar por uma vida melhor, de desenvolver os seus talentos e concretizar as suas ideias. Estas questões são tão sérias quanto infelizmente pouco debatidas entre nós. Talvez daí o sucesso do discurso de Miguel Gonçalves. Apesar da pobreza no vocabulário, o tema da capacidade de cada um tomar conta da sua vida interessa a todos os que não têm "o direito ao emprego", por muito que esteja consagrado na Constituição. Dá a ideia, por enquanto falsa no nosso país, de que o trabalho compensa e que, se não compensa, então a culpa só pode ser de quem afinal não trabalha assim tanto. Esta responsabilização de cada um pelo seu próprio destino e a ideia de que basta fazer alguma coisa para se conseguir realmente fazer alguma coisa, seja isso o que for, deu origem a uma praga de empreendedores em Portugal.
A água do banho é então a fantasia de que tudo é possível e está ao alcance de todos. Assim, nada impede uma pessoa que não tenha a mais pequena ideia do que significa ter uma empresa, empregar pessoas, ter responsabilidade por elas, pagar pelo trabalho, reconhecer o seu valor, etc., nada impede, dizia, que um leigo, um sobrevivente ou um amador, no sentido mais repugnante da palavra, se ponha a empreender por aí, enganando meio mundo com o velho discurso de vendedor de banha da cobra. O problema do empreendedorismo é não ter nenhum valor só por si, separado de conhecimento, seriedade e sentido prático. Mas como de repente tudo é possível e o céu é o limite, então toca a empreender que depois logo se vê. Passámos assim do extremo da dependência para uma febre de optimismo frívolo em que o mundo é de quem o agarra, mesmo que não faça a mínima ideia de como isso se faz, nem esteja especialmente interessado em fazer. Fugir para a frente não é sinónimo de coragem. É só uma maneira de sobreviver, e não necessariamente a melhor.
Portugal adormeceu no que diz respeito à iniciativa privada. As consequências são nefastas e estão bem à vista. Por um lado, há muito desespero, porque a educação em Portugal não está atenta ao desenvolvimento das capacidades individuais nem incentiva a ousadia de espírito. A dependência (do Estado, da família) é fomentada. Por outro, temos esta nova ideia falsa de que cada um é capaz de fazer qualquer coisa, por isso o sucesso está garantidamente ao seu alcance. Como se resolver problemas fosse o mesmo que tapar buracos.
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