E Passos lá foi a Berlim falar olhos nos olhos com Mutti Merkel...

Público, 20/09/2013
Numa decisão arrojada, o primeiro-ministro resolveu seguir os conselhos de um dos sábios do regime, o professor Freitas do Amaral
Não desesperem, há uma solução. Foi um dos pais do regime que, no seu tom solene e inimitável, a anunciou. A meio de uma acção de campanha em Sintra, entre uma queijada e um travesseiro, Freitas do Amaral mostrou o caminho: na segunda-feira, depois das eleições alemãs, o primeiro-ministro tem de tomar o avião e ir a Berlim. Para, como explicou, ter "uma conversa olhos nos olhos" com Frau Merkel. Sem esse "olhos nos olhos", acrescentou, "isto não vai lá".
Parece impossível como Passos Coelho não se lembrou antes desta solução. Com jeito, até conseguiria que essa conversa fosse à mesa de um almoço, esse lugar mágico onde os portugueses sabem que todos os problemas se resolvem. Quando lá for, terá de comer sopa de batata, o prato que Merkel gosta de cozinhar para o marido, mas é um sacrifício que compensará. Nós até já estamos a imaginar a conversa:
- Mutti, estou com um problema...
[Como António José Seguro não estava a ouvir, o primeiro-ministro arriscou o tratamento quase filial que os alemães dão à sua chanceler - Mutti é o equivalente germânico de mamã].
- ... um grande problema.
Do outro lado da mesa, a chanceler franziu o sobrolho. Se não estivesse a agarrar a colher de sopa, teria esticado os dedos e junto as mãos, um gesto que a campanha eleitoral consagrara como sinónimo de estabilidade e segurança e que ela adoptara como forma de resolver um problema prático: não saber o que fazer às mãos quando enfrenta os fotógrafos. Mas também não era um fotógrafo quem tinha pela frente.
- Um problema? O meu ministro Schäuble não me falou de nada.
Passos não gostou deste início de conversa. Ele também lera o artigo do ministro das Finanças alemão no Financial Times. Conhecia a sua perspectiva: "Em apenas três anos, os défices públicos na Europa foram reduzidos a metade, os custos unitários do trabalho e de competitividade estão rapidamente a ser ajustados, os balanços dos bancos estão a recuperar e os défices das contas correntes estão a desaparecer. No segundo trimestre, a recessão na zona do euro chegou ao fim".
- A semana passada foi terrível - queixou-se o primeiro-ministro português. Os juros da nossa dívida estão outra vez a subir. A Standard & Poor"s ameaçou cortar o rating. E, como há uma campanha eleitoral a decorrer, a oposição anda a pedir mais défice para o ano. A oposição, alguns ministros e até o secretário-geral do meu partido. Tem de me ajudar, isto assim não vai lá.
Pronto, estava dito, custara um bocadinho a engolir o orgulho, mas Passos lá conseguiu repetir a mensagem visionária sugerida por Freitas do Amaral. Do outro lado da mesa, seguiu-se um compasso de silêncio.
- Não gosta da minha sopa? O meu marido gosta muito.
Pragmática, como sempre, a chanceler estudava a melhor forma de arrefecer a conversa e comprometer-se o menos possível. Há anos que usava a mesma táctica nos Conselhos Europeus e dera sempre resultado. A Europa não se desfizera, como tantos haviam previsto. O euro aguentara-se. Os países do Sul, mesmo os mais recalcitrantes, tinham começado a fazer reformas, tinham até realizado reformas que antes haviam jurado ser impossíveis de levar por diante. Os países do Norte não tinham batido com a porta. A Alemanha ainda não tivera de passar o habitual cheque. E os eleitores tinham acabado de lhe dar um terceiro mandato e uma vitória folgada. Levantou então os olhos para aquele português que parecia querer estragar-lhe a festa.
- Olhe que vai lá. Tenha fé. Repare em tudo o que já se conseguiu.
Schäuble tinha-lhe preparado um pequeno memorando e a chanceler começou a debitar números. Afinal, tinha ou não Portugal conseguido equilibrar a sua balança de pagamentos? Afinal, tinha ou não a sua economia recomeçado a crescer no segundo trimestre? Afinal, tinha ou não o desemprego baixado? Afinal, ia ou não o país começar a receber uma chuva de dinheiro europeu, agora dirigido à criação de emprego, já a partir de 2014?
Foi a vez de Passos baixar os olhos e fazer uma pausa. Afinal a sopa de batata não estava nada má. Só havia, pois, que reconhecer os números bons e explicar-lhe o outro lado, o lado mau.
- É verdade, as nossas famílias e as nossas empresas têm feito um esforço impressionante. Até já voltámos a poupar mais, como os alemães. O problema não está aí. O problema é o Estado. Em Portugal, está toda a gente a dizer que não pode haver mais cortes. E, mesmo quando se admite que é necessário gastar menos dinheiro, nunca há acordo nem para aparar a unha pequena do pé esquerdo.
O primeiro-ministro estava satisfeito com a imagem que utilizara. Sabia que a chanceler fazia sempre contas e gostava do lado prático das coisas. Teria sido muito mais difícil falar-lhe do Tribunal Constitucional, pois ela também tinha de lidar com os seus juízes.
- O que nós precisamos é da sua ajuda - arriscou. Não de um cheque, mas de mais Europa. Temos de arranjar uma forma de não pagarmos a dívida toda. Não conseguimos. Não é possível.
Merkel só não se engasgou porque estava preparada. Sabia que as coisas, mais tarde ou mais cedo, iriam acabar no tema da dívida. Só faltava agora que lhe viesse mais este falar de eurobonds e perdões. Por isso respondeu pausadamente.
- Perdoar uma parte da dívida? Não estou a perceber. Primeiro diz-me que todos querem um défice maior no ano que vem, a seguir fala-me da dívida? Então mais défice não é mais dívida? Querem que nós aceitemos que vocês gastem mais no ano que vem, no fundo querem aumentar mais a vossa dívida em 2014, e, ao mesmo tempo, dizem-me que já nem podem pagar as dívidas antigas? Isso é pedir-nos para viverem à custa do nosso orçamento. O povo alemão nunca o aceitaria. E, mesmo que aceitasse, não aceitariam os austríacos, os holandeses, os suecos, os finlandeses.
Passos engoliu em seco. Tinha de recorrer à grande retórica. Com um toque de ternura.
- Mutti, anime-se, acaba de ganhar as eleições, agora tem as mãos mais livres. É altura de a Alemanha liderar, a Europa está ansiosa por isso. E, para liderar, é preciso começar por ser solidário com quem está em dificuldades.
A refeição correra célere e o café já fora servido. No meio da mesa estava o prato com os pastéis de Belém que Passos trouxera de Lisboa. Merkel acabara de estender a mão para agarrar um. Passos achou que era o momento ideal para a estocada final.
- Berlim só tem a ganhar com apoiar-nos, é o que toda a gente diz em Portugal. Toda a gente.
A chanceler pousou o pastel após uma primeira dentada e não deixou que a aceleração da sua respiração lhe estragasse o sabor delicado da canela. Hesitou se devia desistir e limitar-se a adoptar aquilo a que a imprensa do seu país chamava a "linguagem Lego" e que tanto resultado dera na campanha eleitoral, juntando apenas algumas frases de plástico facilmente encaixáveis umas nas outras, mas preferiu ser mais frontal. Afinal, o almoço era privado e ela até simpatizava com este gentil primeiro-ministro vindo de Lisboa.
- Desenganem-se. A Alemanha não quer, e sobretudo não pode, liderar a Europa, muito menos pagar para toda a Europa. Não se esqueçam que nós somos um país grande, mas que só três dos nossos estados, a Baviera, o Baden-Wutenberg e o Hesse, pagam para os outros treze Länder. Somos uma economia de sucesso, mas ao mesmo tempo a sociedade mais envelhecida da Europa, ainda mais envelhecida do que a vossa. Hoje somos 80 milhões, mas sem imigrantes seremos apenas 60 milhões em 2050. Por causa da pressão dos verdes, a nossa indústria paga a energia mais cara, 40% mais cara do que em França. Para além disso, somos bons nos produtos industriais clássicos mas não somos muito inovadores. Não temos nenhuma universidade entre as melhores do mundo e os nossos actuais Einsteins preferem emigrar. Estamos bem, mas isso dá-nos muito trabalho e estamos inquietos com o futuro. Pensar que podemos pagar por vocês todos é afundar-nos todos em conjunto.
Passos engoliu em seco. Nada do que Frau Merkel lhe dizia era novidade. Tinha-o lido, todo retorcido na cadeira de classe económica, nos recortes doFinancial Times, da The Economist, do Wall Street Journal e da Spiegel, até num artigo de Timothy Garton Ash na The New York Review of Books, que os seus assessores lhe tinham metido na pasta para estudar durante a viagem. Desanimado, repetiu-se.
- Pois é, mas isto assim não vai lá.
Quase maternal, Merkel não insistiu. Era preciso desanuviar o ambiente. Foi então que se lembrou de lhe perguntar por Vítor Gaspar, o ministro das Finanças de que ela e Schäuble tanto gostavam. Passos respondeu à portuguesa.
- Vai andando, julgo eu. Vamos todos andando...

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