A insuportável arrogância da esquerda
Não me espanta mesmo nada a displicência enfadada com que foi pela Esquerda acolhida a notícia da morte de António Borges, por contraste com a comoção homérica que provocou o desaparecimento de Miguel Portas. A Esquerda sempre teve dois pesos e duas medidas. Um dos postulados capitais, basilares do comunismo sempre foi, e continua a ser, o de que a moral deles é diferente e superior à dos outros. Defendem os pobrezinhos, pugnam pela igualdade dos homens, prometem construir sociedades em que cada um receba o que precisa independentemente do que merece, almejam a felicidade e o bem-estar universais. O Bem está do lado deles. Por isso mesmo - e atente-se na perversão contida neste (aparente) paradoxo - podem perpetrar o Mal à vontade, sem limites nem escrúpulos de qualquer ordem. Trotski, como aliás Lenine e sobretudo Estaline, foram explícitos a este respeito: os comunistas podem sequestrar crianças, matar pais e filhos e avós, dizimar populações inteiras à custa de fomes deliberadamente provocadas, prender, torturar, executar e deportar milhões de pessoas, perseguir ciganos, judeus e homossexuais, sem que por isso percam uns minutos a vasculhar qualquer culpa albergada nalguma prega recôndita da sua massa encefálica, ou sem que ao menos lhes ocorra proceder a um exame, ainda que perfunctório, das suas consciências. Sempre estiveram e continuam perfeitamente tranquilas, apesar dos crimes inqualificáveis que cometeram.
Sempre me repugnou a condescendência generalizada - sim, generalizada à esquerda e à direita - de que os comunistas beneficiam e sempre beneficiaram. A razão disso não é difícil de descortinar. Praticaram atrocidades, mas foi pelas razões mais justas, belas e humanitárias do mundo, ao passo que Hitler assassinou milhões de judeus inocentes por um motivo que lhes não podia ser imputado, o facto de terem nascido judeus. É verdade que assim foi, desgraçadamente. Mas quem ler alguma coisinha de história do regime soviético aperceber-se-á rapidamente de que os kulaks, de classe social que eram, foram transformados pelo estalinismo numa raça ou etnia: os filhos de alegados kulaks, tão inocentes como os judeus massacrados pelos nazis, eram perseguidos, presos e mortos precisamente por isso - por serem filhos de kulaks: a peste transmitia-se de pais para filhos e netos; aliás, "kulak" tornou-se um insulto como foi o de "fascista" a seguir ao 25 de Abril: um epíteto depreciativo ou até odioso, completamente desligado da sua significação político-sociológica original. E, na Pátria dos Trabalhadores, ser kulak, real ou inventado, serviu de desculpa política para toda a casta de perseguições e assassinatos. Depois, a Rússia teve um papel decisivo na derrota da Alemanha na II Guerra Mundial, e isso, aos olhos de um Ocidente capitalista eternamente culpabilizado - por motivos longos de explicar - tornou ainda mais luminosa a auréola que emoldurava o Comunismo.
Mas não foi preciso esperar pelo desfecho da II Guerra Mundial para que um regime bárbaro e sanguinário acabasse bafejado pelas boas graças do Ocidente e em especial pelos respectivos intelectuais, salvo honrosas excepções como Aron ou Camus. Em meados dos anos trinta do séc. XX, Boris Souvarine tentou esforçadamente publicar em França uma biografia de Estaline, tendo submetido a obra (que ainda hoje se recomenda (1)) à Gallimard. Dada a ausência de resposta, Georges Bataille intercedeu junto de André Malraux, membro do comité de leitura da editora. Eis a resposta dada por este ilustre e celebrado intelectual de esquerda, um medalhado da Democracia: "Je pense que vous avez raison, vous, Souvarine et vos amis, mais je serai avec vous quand vous serez les plus forts." (2) O curioso está em que mesmo hoje, quando já são eles os mais fracos, continuam, em países como Portugal, a beneficiar de um respeito e consideração que o seu passado, nunca renegado, em absoluto não autoriza.
Nunca os comunistas portugueses admitiram qualquer erro ou crime e ainda menos qualquer culpa. Nunca se demarcaram do estalinismo - nunca fizeram a mais leve autocrítica - e, para meu espanto e de muitas pessoas, acham-se os verdadeiros democratas e lutadores pela liberdade. Esta arrogância moral brada aos céus. Mas o Jerónimo e a sua capelinha lá estão sentados no Parlamento, falando em nome da Democracia e - pasme-se - de Portugal e dos Portugueses, enquanto o já não tão jovem Bernardino defende nos Passos Perdidos, em frente às câmaras de televisão, que a Coreia do Norte é um regime democrático. Que dizer de Cuba, esse paradisíaco santuário dos pobres e desvalidos do mundo, onde a Liberdade nos entra pelas narinas! Quando em 1991 os comunistas russos ensaiaram um golpe de Estado para liquidar Gorbatchov e asfixiar novamente a União Soviética, os comunistas portugueses rezaram para que o golpe triunfasse, e não conseguiram disfarçar o seu desgosto e frustração pelo desfecho vitorioso da liberdade.
Isto - esta recusa em olhar de frente o passado e reconhecer o crime - cava em Portugal um fosso intransponível entre a Democracia e o Comunismo: está aqui a raiz da impossibilidade de diálogo, a origem de um insanável desaguisado que nos transforma em inimigos e nos impede de discutir ideias racionais como adversários polidos e civilizados. Mas então, e a Esquerda não comunista? A Esquerda socialista ou não alinhada? (Não me detenho no Bloco para não gastar espaço com minudências.) A Esquerda socialista e não alinhada não renega as suas remotas origens, como um filho não renega um pai alcoólico ou ladrão; e, mais decisivo, partilha com os comunistas, embora mais discretamente, a aversão pela Liberdade tal como os liberais a entendem, e abominam o regime capitalista em que ela nasceu, germinou e se expandiu (3). Para António Borges está naturalmente guardada uma olímpica indiferença ou um aberto desprezo.
1) Última edição: Paris, Éditions Gérard Lebovici, 1985.
2) Idem, p. 12.
3) Isaiah Berlin, Four Essays on Liberty, Oxford University Press, 1969 (várias reimpressões).
Historiadora
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António Viriato_13Set2013